sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Um Não Lugar Qualquer

Aqui, talvez. Dizer "talvez" é quase ser dono do espaço. Muito ainda aqui. Quem dirá que o onde é aqui? Dizer "talvez" é colocar um chifre no lugar, esse de boi bravo que a gente olha por detrás da cerca. Porque o que está no lado de lá, o boi, é que determina o que está no lado de cá, quem observa. Dizer "talvez" também é quase dizer o contrário, é fazer voltar a visão para o lugar onde a luz não alcança, aquele ponto de sombra que expõe as margens de todo objeto. E o objeto é dúvida, seja onde ele estiver, aqui ou do lado de lá. Dizer do lado de lá é saber-se num dos lados, adiantar o lado, o lugar onde. Saber-se no espaço é a estação de espera. Uma mulher atravessa a rua, sobe a calçada, finca o corpo num lugar imaginário, próximo a uma árvore, onde espera o ônibus. Ela é quase o destino, desde que seja transportada até lá, desde que chega. Ela marca na espera o "talvez", é a estação.  E aqui? Uma esfera que não se pode ver. Suas marcas, seus relevos são claros e passou a ser. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Imagem

A imagem é o que exatamente é. Não, a imagem não é. Ela é exatamente o que não é. Não é exata. Não é. Negar e ser, negar ser, sim, afirmar a negação de ser. A imagem é a negação. A imagem não nega o que ela quer que seja, não nega o que ela não é ou deixa de ser, não quer. A imagem está em nenhum tempo verbal. A imagem está onde está. Não está. Nunca esteve. Nunca estará. A imagem nunca se nega, nem se afirma. Nunca será nunca. Qualquer coisa que se afirme ou negue sobre a imagem é melhor que não se faça. É melhor que não haja o que é melhor, nenhuma tentativa de negar ou afirmar. Assim, não trazer pontos, escrever. O que há de absurdo nisso tudo, se há algum absurdo ou se isto é isso ou algo que possa ser tudo, é que o ponto sobre a imagem nos lança de tal modo a um abismo em que cada grão do que se vê é um outro abismo particular, talvez como uma espiral. A imagem não está, ela permanece neste estado de lacuna como uma matéria que nos escapa, suspensos, inertes, no abismo dela mesma. a imagem, o espaço, o tempo, o que passou. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Um poema de Alexander Puchkin

Cansado da fome espiritual
Em meio a um deserto triste meu caminho fiz,
E um anjo de seis asas veio a mim
Num lugar onde havia uma encruzilhada.
Com dedos leves como o sono
Tocou as pupilas de meus olhos
E minhas proféticas pupilas abriu
Como olhos de águia assustada.
Quando seus dedos tocaram meus ouvidos,
Estes se encheram de rugidos e clangores
E ouvi o tremor do céu
E o vôo do anjo da montanha
E animais marinhos nas profundezas
E crescer a videira do vale.
E, então, pressionou-me a boca
E arrancou-me a língua pecadora,
E toda a sua malícia e palavras vãs,
E tomando a língua de uma sábia serpente
Introduziu-a em minha boca gelada
Com sua mão direita encarnada.
Então, com sua espada, abriu meu peito
E arrancou-me o coração fremente,
E no vazio de meu peito colocou
Um pedaço de carvão em chamas.
Fiquei como um cadáver, deitado no deserto,
E ouvi a voz de Deus clamar:
“Levanta, profeta, e vê e ouve,
Sê portador da minha vontade -
Atravessa terras e mares
E incendeia o coração dos homens com o verbo.”

Alexander Puchkin
(1826)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

ir se ou vir se

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O estranho estranho

Há de haver brechas para que a vida se articule em alguma outra coisa, de alguma outra forma. Se não tudo poderia se passar em dor de garganta ou vizinhas por trás da janela. Para mim existe o estranho estranho.  E não é uma pessoa, nem um acontecimento, nem um objeto, nem uma sensação. É tudo isso misturado, junto, praticamente uma entidade sem rosto nem nome. Seria o vento? Digamos que não sei definir mas que ele existe, existe.
Acho que o estranho estranho veio dos tempos primórdios e brigou com outras entidades sem rosto e sem nome para estar hoje em dia aqui entre nós. Com certeza tinham outras entidades  que acompanham outros povos, nossos antepassados e que nem fazemos idéia do que elas eram capazes pois hoje elas não mais pairam por ai. Então não sabemos daquilo que não experienciamos.  Alguns acham que isso é ciência e está associado às teorias Darwinistas, outros sentem a espiritualidade,  tem aqueles que apenas se ligam à internet, sem juízo de valores,  podemos ser os três ao mesmo tempo. Não importa, que ele teve embate com outros seres para estar entre nós, ele teve, passou pela era glacial e as grandes navegações e cá se acomoda nos dias de domingo enquanto famílias assistem televisão.
Quase sem querer, quem nunca pegou um cigarro depois da bebida, de não mais saber o que fazer com as mãos num momento de espera ou porque todos estavam pegando e sei lá. Ou sabe num velório, você olha ao redor, as pessoas choram, não há muito o que ser dito, os olhares se tornam distantes em vários momentos. Simplesmente é nessa hora que está o estranho estranho. Ele está entre os objetos parados e sem função que se juntam na garagem das pessoas de um bairro da zona leste ou no meio de uma música de dez minutos, nos exatos cinco, onde você encontra-se osmótico. Talvez numa garfada de arroz e feijão que você pensa por que arroz e feijão é arroz e feijão e não batata com peixe. Quando um físico descobre a fórmula que queria descobrir a vida inteira e depois olha para todos os papéis, todo o quarto.

Se fosse para eu descrever o estranho estranho em um roupa seria uma capa preta de cavaleiro.  Se fosse para descrevê-lo numa acentuação seria reticências.  Uma palavra? Deixe-me ver, ornitolaringologista ou o nome de um autor do leste europeu,  não pelo significado mas porque acho que deveria ser um palavra complexa. Este momento de não reconhecer-se, de parada, em milésimos de segundos ou alguns anos. E lá fica o estranho estranho em gerações, acompanhando os pensamentos sobre se as pessoas são pessoas ou extraterrestres. Marco Polo vendo um esquimó e um esquimó vendo Marco Polo e ambos pensando: mas que porra é essa? Enfim, as coisas assim em brecha de poderem ser o que não eram antes.

Por Ana Landia

-das belezas de ler-

domingo, 15 de setembro de 2013

Ítaca

Se partires um dia rumo à Ítaca 
Faz votos de que o caminho seja longo 
repleto de aventuras, repleto de saber. 
Nem lestrigões, nem ciclopes, 
nem o colérico Posidon te intimidem! 
Eles no teu caminho jamais encontrarás 
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes 
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti. 
Faz votos de que o caminho seja longo. 
Numerosas serão as manhãs de verão 
Nas quais com que prazer, com que alegria 
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto 
Para correr as lojas dos fenícios 
e belas mercancias adquirir. 
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos 
E perfumes sensuais de toda espécie 
Quanto houver de aromas deleitosos. 
A muitas cidades do Egito peregrinas 
Para aprender, para aprender dos doutos. 
Tem todo o tempo ítaca na mente. 
Estás predestinado a ali chegar. 
Mas, não apresses a viagem nunca. 
Melhor muitos anos levares de jornada 
E fundeares na ilha velho enfim. 
Rico de quanto ganhaste no caminho 
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse. 
Uma bela viagem deu-te Ítaca. 
Sem ela não te ponhas a caminho. 
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. 
Ítaca não te iludiu 
Se a achas pobre. 
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência. 
E, agora, sabes o que significam Ítacas. 



Constantino Kabvafis (1863-1933) 
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

E se a pétala perder a flor?

O que te falam os monstros
ou os lobos dos quais me diz?
Para aquieta-los em teus mistérios
Há que servir-se de penas
nesta noite fria que tal
vento te descobre as veias.
Há que todos os dias
encher a vasilha de úmidas pétalas
que saem do gozo de uma fricção ruidosa.
Há que mover com óleos a fissura 
de tuas engrenagens, para que elas
não se tornem ásperas como cantam
certas aves.
Há que deixar palavras se soltarem
como os meninos em colado cerol
arrebenta o espaço que despenca
cromático sobre os fios.
Há que se perder na esquina
onde tua boca acende o poste.
E tais monstros, vampiros e lobos
são cascas ou caroços das frutas
roídas de tuas palavras.
Há poucas coisas mais belas
que o caroço.
Ele que não te serve,
descarta sobre a terra 

num campo de inúmeras feras
que te vestem a alma da fome

que tuas palavras tem.
Quando se sabe que não há o que dizer
para aliviar o uivo daquilo que é
a perna manca de teus passos,
palavras de esperanças
são sintéticas.
O que se come é a carne
marcada de patas
de um quadrúpede que te 

segue.
Como passear com cães
estupidamente educados.


domingo, 1 de setembro de 2013

Ou fato

Quase dezoito. E nem era pela idade, era tarde. Sabe aquele cheiro? Das coisas vividas que descem junto ao dia no longe? Era pra lá mesmo. Numa lonjura. E chegavam pessoas, umas de chinelos e mãos sujas, outras, mais tarde, de botas e casacos. O fogão aceso crepitava outro cheiro de pele, a fumaça que se sentia no banho aquecido pela serpentina, aquela parede escura onde andavam lagartixas atrás dos insetos menores. Já não se via mais rastro do dia, como narrar? Bom, era assim, anoitece, anoitecia. Cedo, bem cedo, ainda escuro, levantavam os filhos mais velhos pra tratar do gado e tirar o leite, da cama se ouvia o tratamento e levantava aquele cheiro de esterco e curral. Novamente o cheiro, esse de um biscoito doce junto ao café, acordava a gente pra se sentar à mesa dos trabalhos matutinos sendo realizados aos poucos. Depois era correr com o carro de boi até a plantação pra outros acertos. Sol a pino, enxada fazia aço na terra como um violoncelo. Almoço, aquele prato fundo e o copo de limonada com limão capeta. De tarde outros acertos e depois a pausa pra brincadeira, o futebol no gramado que ficava bem em frente a casa, a pescaria, o outro que fazia arapuca pra pegar passarinhos. Pegava e soltava, o bom era ver dar certo, sentir o coração do bicho apressado nas mãos pra saber mesmo que tudo ali passava mais lento, como se pegasse o tempo e dissesse que não, depois podia ele voar pra outras bandas, assentando suas penas em galhos de outras terras, em rincões de outras raças. Ver voar era pausar e ser o de sempre a repetir como o martelado canto da coruja pela noite. Já tanta coisa. Ali mesmo à beira do fogão, a senhora sabia. Perdeu o marido, os pais, e agora se diverte com os filhos falando em casamento e brincando de bola no gramado. Na lonjura leva o pássaro nas suas asas o peso dos dias e faz a curva. Nessa hora é que apareciam gente pra tomar a cachaça, falavam da plantação, da chuva que não veio e do poço que não achou gota d'água no fundão. A pele de porco servida e o baralho que ia até mais tarde, no meio de prosa, de cheiros, histórias. A mesa. A janela pequena. Os quartos. O porão. E lá fora só se vê barulho em camadas e nada além. Dá hora de dormir, abrir e fechar os olhos é o mesmo negrume. Martela a coruja e todo corpo, são ponteiros do tempo sussurrando do amanhã, do amanhã, do amanhã.

domingo, 25 de agosto de 2013

Grão

Voltei a cavar os quintais, dessa vez noutro interior, em busca de memórias. O primeiro, no sábado, fui à casa de Dona Maria do Gercy. Lá chegando, Soraya que mora agora sozinha na casa depois que sua mãe, Maria, faleceu, estava no quintal conversando com o Lobão, homem que faz os serviços da casa, capina, cuida do jardim e compra cigarro na venda pra ela que está com os joelhos machucados por causa de uma queda. Levei comigo a ração pro gato, pães e biscoitos que sua irmã, Suzete, me pediu que levasse sabendo que eu ia pra lá. Chamei e fui falar com ela na cozinha onde entreguei a encomenda. Sabendo do projeto e autorizada a escavação, me disse que abrira recente o cofre de seu pai que estava fechado há 36 anos. Lá funcionava há 100 anos uma "pharmácia" e um banco, bem antes da cidade se conhecer como cidade. No cofre foi encontrado latas antigas com vários frascos de drogas para manipulação, do tipo ópio, cocaína, morfina, e também uma lata com folhas de coca assim como cartas, notas promissórias e muitas fotos antigas da família. Pude ver tudo e registrar em fotos. Há uma foto que me impressionou: no primeiro plano estava Meire, linda, jovem; logo atrás, numa canoa tomada por ramas dentro de uma lagoa, Dona Maria do Gercy ainda jovem sorrindo para o fotógrafo, o momento era de descontração; ao fundo, na ponta da canoa, Domingos muito elegante segurando um revólver calibre 38 apontando para algo fora da cena, este que viria a ser o marido de Meire; e, ao centro e ao lado de Maria, Mita fitando algo nas mãos, cabisbaixa com um arco segurando os cabelos cheios, tristonha. Naquela foto, só saudades que um canto trás, Domingos, seu Domingos, Meire, Dona Meire da padaria, Maria, Dona Maria do Gercy, Mita, Dona Mita tão falada, tão ausente naquela foto onde a presença dos outros é um instante gravado no papel que passou anos amarelando dentro de um cofre e hoje circula as mãos das muitas saudades. Os olhos de quem os conhecera, parece que escutam as vozes, sorri esse contido que não se prolonga pelo resto da vida, pois junto há a lembrança de um fim, esse que cala e que torna os lábios trêmulos e longes a mesma canoa suspensa metida em ramas onde seus corpos foram vistos pela última vez. 
Assim que fiz os registros, fomos ao quintal. Soraya me levou a um pequeno barracão ao fundo onde havia livros com mais de um século, da farmácia do Gercy, e um caderno de poemas, da década de 50, com uma linda caligrafia que fomos descobrir ser de Suzete. 

No momento da escavação, parei para observar o entorno, a vegetação e as galinhas que levam cada uma nomes das primas de Soraya: Lêda, Bochecha, Parasita, que é a Ana Márcia, entre outras. Adriana teve que ser sacrificada porque estava comendo os próprios ovos. Um pintinho se perdeu do bando e piava seu desespero que era respondido pelo chamado da mãe, não sei qual das primas era. Era a vida na superfície e suas memórias naquele espaço carregado de outras lembranças. Suava, dia quente, um vento veio e parei pra senti-lo pensando na criação, noutras coisas tão divinas como o vento e me lembrei que para falar com Deus precisava ter voz de passarinho.

Quando terminei, fui à cozinha beber água e lá Suzete foleava seu caderno de poesias, pediu pra que eu me sentasse e recitou este poema de Cassimiro de Abreu:

Deus


Eu me lembro! Eu me lembro! - Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.


E eu disse a minha mãe nesse momento:
"Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?"

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E me respondeu: - Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,

Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.




Fiquei a imaginar este Deus maior que o tufão e o mar temido. E, não, pensei, ele é tão pequeno que cabe num canto de pássaro, de saudade, de lembrança, num grão.
Cada passo é um quintal diferente no guardado das lembranças e não há medida para a saudade que passeia atrás, como Deus nos vendo do distante. Ainda não consegui ter a voz de um passarinho. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Afã

Nesta grama, mais verde, passava um riacho de água que vinha da serra atrás, limpa de beber. Era forte aquela água, descia numa rapidez tão imediata. A gente mesmo ficava lá por um tempo vendo aquela pressa toda, diferente d'água do rio largo que corre noutra textura - parece - não fosse pela margem, corre parado junto da gente. Uma coisa assim, boba, dá quase pra pegar na mão, guardar no bolso da camisa, levar pra ver de noite quando já deitado na cama à luz de pouca luz, na madrugada escondido sozinho, metido naquele rio, como uma esfera mesmo, dessas prateadas que a gente olha até. Depois deixa ela, o sono, e dorme como se fosse a continuação daquelas águas, uma coisa essa quase, em sonho levado adiante. Esse riacho na pressa toda, não dava pra pegar, não, era só ver e aquilo dava na gente uma pressa também, pra chegar logo, atravessar, ir pra onde a gente tava indo, que era a lagoa larga. Naquele tempo eu não sabia, como não sei agora. E o que é que a gente sabe? Sei que deitei todo naquele riacho, deixando a pressão daquelas águas miúdas e fortes contornar minha cabeça e jorrar aquela urgência pro resto do corpo, fria, parece que fui benzendo. Era esse lugar mesmo, todo lá no fundo raso junto dos cabelos de mato numa direção só. Era a única maneira de dizer coisa que não dá pra moldar nas palavras. Foi assim, no impulso, e eu disse. E foi assim também que era outra hora a de ontem, porque passa, atravessa, prateia, desemboca súbito quando vê que no bolso a gente leva nada, rio num pega na mão, ele é dentro, já tá. A memória é olho que fica no longe, trazendo pra perto, rio correndo ao revés.
E nesse tempo já sem chuva... noutrora aquela serra volta a falar do seu riacho pra gente e a gente a falar nele as coisas.











sexta-feira, 2 de agosto de 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Muda


A Barca Acesa

Perdera as contas, próximo a nove ou doze vezes, que aquele cheiro perfumado (percebe-se o tom roxo com rastros esverdeados e azulados, como uma aurora, de onde vem, caso seja dum frasco ou duma flor) chegara até a barca. Mastros, velas, ondas, tábuas, toda uma escrita do espaço finca frouxa sem tinta um vão na garupa do tempo. Presa aos olhos, aquela barca, nessa hora perfumada, não existiria caso não fosse pelos cristais fugidios que acendem na água pequenos prismas como faíscas a confessar a luz de um astro. Tais pontos não poderiam ser capturados, eis a medida da loucura, se é ela o sem fim de um outro sem fim inteiriço e líquido que consome aos poucos a esperança de um lugar e resgata o corpo como âncora, aos sons ritmados de ondas como se fossem a voz de um grunhido vão, neste espaço da barca, fazendo-a existir e ser extensão das mãos agora se soltando frágeis ao sentido mais doce do olfato.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Vó Zenir



A “mamma” de sempre, generosa e forte. Já com suas perdas que a deixam olhando um lugar que janela adentro, passeando os dedos nos desenhos dos forros de mesa ou nas marcas da pedra do balcão onde as vasilhas limpas secam, numa caminhada difícil com pernas de mais de 80. Ainda a preocupação, os filhos não cresceram, as filhas se tornaram parte de seu vestido gasto de rosas quase apagadas. O arroz dela, que meu pai diz ser o melhor, unido, como todos devem ser. A risada, ainda. A palavra forte, ainda. O sabão feito em casa, ainda. As couves da horta, junto aos pepinos, cheiros verdes. A farinha misturada ao óleo da sobra para alimentar as galinhas, ainda. E não é tarde. Mesmo que a rua já é quase um abismo sem ponte, ainda se ocupa de seu espaço cheio de veias doando seu sangue aqui, nas casas de inúmeros filhos. Deseja uma conversa com o padre, pra dizer de um tormento de um fio rompido e que se escutou na particularidade do rompimento um grito dentro de uma cabaça. A memória da casa na fazenda, dos muitos filhos, do casamento, tudo se espelhando roxo e branco, depois verde, amarelando num maracujá que traz às mãos. Um olhar surdo pro mundo, quase canta: “que fruta bonita!” E nossos olhos são as belezas do maracujá. O mundo despenca oco no chão, são os braços fortes de quem viveu mais que a gente.



segunda-feira, 15 de julho de 2013

Tecendo a Manhã

João Cabral de Melo Neto
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Sem Ponto

Voltar.
voltar não tem ponto
nenhum caminho é ponto
nenhuma palavra
nem estrada
não há pausa
cessar não existe
Voltar
Enxugar da terra os olhos
ter as mãos e das mãos
o círculo negro
esfera polida
desce
íngreme ladeira
sem volta
Voltar
Vou
Vai
Estar
Altar
corrigido em forros
malha dedicada
tecida, talhada
faz teia
e dilacera
o tempo amarelo
de um passar
de fios
Fios
Vejam
Fios
Vão
Voltam
E o que nos desce
caso fosse oferecer
É um ponto
Voltar
não tem pontos
Desta ladeira
escorrega fácil
feito este amor
tecido
e esquecido
tal como teia
que atrasa
dos ventos
não ter pontos
O que sinto
se sinto
não tem ponto
é fio que traça
é volta que quer ir
despontada
Numa serra
declinada
ladeira abaixo
Uma gota
que não sai
sem ter fim


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Objeto

Estava o objeto branco, quase uma escada
lá naquele canto do muro
quase um varal
naquela varanda
Prateleira do espaço, cubos de concreto
Objeto
Casa
Uma janela fechada
Um chamado solto
No frio de seu piso de pedras
Concreto
Concreto
Treslouco
um pedaço de cão
Como antena
sintonizada
num canal
que transmite
o objeto
a casa
a quase escada
naquela quina

Rodeado em rede
cerca de ganchos
sustentam vasos
de verdes nauseados
a sair pelos furos imbecis
gotejam o cuidado
que permanece o mofo
cerca
cerca
cerca
o pescoço exposto
já sem penas
a veia que pulsa
naquele rosa
que grita
vermelho
a cair num prato
convulsão
se desfaz
as linhas
e o objeto cai.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

rum rum

imagine-se na rua cantarolando
um rum rum rum qualquer
esqueça

sábado, 25 de maio de 2013

Giz

Tiro de dentro daquela bruma água um giz
talo branco encharcado nunca viu sol
destroço suas partes delineando ervas
Couraça romã que de sol se despe

Seguimento branco, branco, branco
risco

Anulo com as medidas o já me é
toco a campainha da tarde
e o giz que invade louco
já não me sobra

o branco nas minhas mãos
é mais volume que a erva

devolvo ao rio o barro áureo
e nele faço a minha própria armadilha

me desfaço na nascente
e me prendo nela a vontade
atado em risco
tangido em giz.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Não amanheceu.
Esperei que viesse
Não veio.
Esse gramado gris
onde a antena repousa.
Não veio o gozo enfim
De um dia que ficou
pela metade,
A água na caçarola
ainda fria
O fogo não atingiu o ápice
Tal rastro não se desfez
no comando dos ventos
Não despencou conforme
as horas
indiferente à gravidade.
O som congelado
num poema
que não ebuliu.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

domingo, 5 de maio de 2013

Dia de Despedida

A cama ainda com suas bagunças. Papeis desenhados, escritos, caligrafia de quem se encanta com as palavras escritas, onde a personalidade está amadurecendo nos traços tortos das letras. Jogos, brincadeiras com a palavra "abracadabra", 1, 2 e 3, pé de cabra. O pé de limão e a cabra fiz agora há pouco. Está aqui. Há tantos poucos minutos essa cabra magra sob um sol quente e seu dono de botas grandes se fazia sob o olhar de quem espera pra completar a brincadeira e depois ser gatinha miando pela casa, caindo no meu colo, brincando com o cachorro que tudo entendia. 

Há poucas horas no cinema, um conjunto de símbolos que a faziam mais próxima, encostando a cabeça nos meus braços e abraçando-os, sabíamos desse momento compartilhado em frente a tela grande que não era maior que estar juntos, rir juntos, emocionar por algo que falava da distância que era nossa visita de hoje a noite. 

Um copo de amor deu-lhe a noite tranquila, quando o nariz escorria e os olhos ardiam. Antes as histórias de um livro que éramos nele as personagens. Numa frase engraçada, viro o rosto e vejo o seu já dentro dos sonhos, aqui, bem perto. Que momento é esse? Isso não é cinema, literatura ou qualquer outra coisa, era real e o tamanho não se mede, só um choro que vaza aquilo que não cabe. Luz apagada, noite tranquila, acordar de madrugada pra cobrir um pequeno corpo que sentia frio e ser tranquilo novamente o sono, sendo o dela agora aquecido e protegido. 

Não, não era o que a gente queria das horas, pernas largas de ponteiros que galopam no mesmo ritmo da saudade.

Despedir é soltar do peito o mesmo passarinho do livro, sentir o vazio que agora grita seus gestos e seu piado aqui na memória dos cômodos.

É, a vida é essa, grande de amor. Minha filha viaja amanhã bem cedo, dorme hoje na casa da avó. E o que fica, além de tudo, é um "tchau pai" cheio de lágrimas e a cama a esperar por outras noites e histórias juntos. A saudade já começa a mostrar seus grãos brancos na palma da mão, cheia deles como num céu de estrelas que tocaram carinhosamente aquela pequena grande menina que tem aí uma vida inteira e o pai que sou a aprender com ela.




Vidro Embaçado

Não se pode ir ao centro do quarto. A primeira tentativa foi bloqueada por uma gigantesca teia de aranhas, várias espécies, desde as pequenas às maiores que estavam lá em algum lugar. É quando se descobre que ali passava um rio. Não se pode ir ao centro do quarto. Lá, um cortejo passa seguido por meninos que brincam de soldados. É o cume, vê? Nele aponta a graça de um horizonte descascado nas paredes, se perde. Nem lasca de pedra consegue raspar os finos tecidos desta teia. Aquele vidro embaçado de ilusão, descoberto, não acaba. Nem uma janela por onde a cabeça possa passar. Anjo Exterminador. É quando se descobre que ali passava um rio. Destreza impecável das aranhas, arquitetura infalível, doce. Abrindo espaços na teia, um rio cristalizado e preso, como se virasse gelo, preso cada partícula. Lá estavam também os peixes cristalizados como ornamentos em presépio, num tom azulado e tétrico. O centro do quarto inatingível, fechado por uma cortina transparente tomada de pequenas mortes. É preciso ir até lá, atravessar esse rio estático, desbloquear os peixes já sem órgãos, cheios da saliva venenosa que lhe dá a ilusão de um eterno sono. Ir ao centro do quarto.

sábado, 4 de maio de 2013

Viajando as Vacas

Escrever é ler. Isso. Uma cena, como pode existir nas palavras? Como elas conectam a memória, a fala, o tom, os gestos? Imagine uma escola pública no interior. Aqui é tarde, quase cinco. Sábado calmo, algumas crianças brincam de cartas no passeio lá fora, nessa rua tranquila com pouco tráfego. O que escuto agora é um zumbido de moto, janelas se abrindo, cachorros ao longe e o palavrão das crianças que brigam por causa do jogo. Há algo que não posso entrar, escrever. Não sei o que é. Toda essa tarde, fuga das horas, não completa, não é. Busco nas janelas dos prédios vizinhos alguma pessoa e parece que estão todos vazios, o que devem fazer uma hora dessas? Televisão, internet? Podem estar jogando buraco, algo assim, ou falando no telefone ou enviando e recebendo mensagens. Ou mensagem nenhuma chegou e sobra a cama a oferecer o teto pra olhar, enquanto o tempo passa. Apitou alguma coisa no celular, promoção de créditos. A cozinha limpa, o almoço guardado pra janta. Um pão lambuzado de manteiga acompanhado por um café de mais cedo, sozinho. A cidade. Onde está a cidade? Nas rodovias e na certeza de uma segunda-feira de trabalho. Amanhã, domingo, o que farão? Era sol da manhã num dia bem frio. A arquitetura daquela escola fazia sombra numa parte da escada onde vários meninos sentados liam contos infantis para a avaliação de leitura. Alguns conseguiram uma parte onde batia o sol, outros se queixavam do frio na sombra e uma menina que não lia bem ensaiava sua leitura como se depois de cada palavra houvesse uma vírgula, pausava, pausava, numa dificuldade. Aquela escada é a que dá para a sala da diretora, ninguém gostava, e na mesa dela a professora esperava corrigindo algumas provas até o momento de chamar a primeira criança. O tempo era suficiente pra ler mais de três vezes cada conto, a não ser aquele cheio de vírgulas que a menina não conseguiu ler uma vez sequer. Um menino lia seu conto e sua parte preferida era a que falava de um vaqueiro que ficava viajando as vacas. Viajando as vacas... Como era viajar as vacas? Imaginava o vaqueiro feliz levando suas vacas para passear entre as montanhas, dias de caminhada com todo rebanho de vacas, passando por lagoas, rios, até chegar ao litoral, onde as vacas já estavam, cada uma, de óculos escuros. Lia bem. A professora chamou o primeiro, o segundo... De lá podia ouvir as histórias todas enfatizadas em suas pontuações, importando apenas ler bem. Na sua vez, a sala era ainda mais fria que lá fora na sombra e a mesa enorme com muitos papéis, mesa de madeira grossa, pesada. Começou a leitura sob as lentes dos óculos da professora baixinha que quase desaparecia atrás da mesa e da papelada. Na sua parte predileta, deu um grau à frase onde o vaqueiro viajava as vacas. A professora que acompanhava o conto com outra cópia nas mãos, corrigiu: "vigiando as vacas".

domingo, 28 de abril de 2013

Os Patos, as Ondas e o Infinito

Um exemplo de infinito pode ser observado numa lagoa onde um ou mais patos nadam. O ideal é que um pato esteja nadando isolado do bando. O vértice criado por ele, o ângulo que forma a abertura, as ondas que se abrem por detrás do pato, se pensarmos o universo como um único lago, esta abertura de onda criada não teria onde terminar, continuaria se abrindo infinitamente. Com isso, um único pato neste lago seria capaz de, por um único ponto, percorrer todos os outros pontos do universo de forma interminável, através de ondas, do seu comportamento, do seu movimento. Esta abertura não seria apenas observada na superfície, mas também resultado de outras dimensões, camadas, uma delas é o que move o pato, suas necessidades e vontades, num outro campo. O que pode vir a fazer o pato se mover é tão misterioso quanto as ondas para um observador que está numa distância em que não se pode ver ou saber da existência do pato. Para este observador alcançar o entendimento da onda, teria que se dirigir à fonte, onde está o pato. Dependendo da velocidade ele nunca o alcançará ou então demorará muito ou pouco para alcançar, pois neste exemplo o pato é imortal e está sempre se movendo. Alcançando, encontrará, então, a “origem” das ondas e, da mesma forma que o pato, já que está numa lagoa infinita, produzirá outras ondas que poderão ser vistas por outro observador além. Ao pato, agora real, não se pode afirmar que ele tenha conhecimento das ondas que produz, apenas que “sabe” como produzi-las. O que se pode dizer de ambos (patos e ondas) é insuficiente se nos conformarmos com a palavra que os denominam, “patos” e “ondas”. Buscar entendê-los é caminhar sentido à fonte e neste percurso podemos nos confundir com outras ondas produzidas por outros patos, outros observadores ou por nós mesmos. Buscar as fontes é percorrer um caminho inesgotável, talvez inalcançável. O princípio nos foge, como nos foge o entendimento do próprio universo, o que continha antes, o “nada” e também a compreensão do “tudo”. Supor que estamos em contato todo o tempo com o princípio, o que havia antes dele, bem diante de nós, é também produzir ondas como os patos. Imaginando a construção do entendimento do universo através da imagem de um lago e que todo comportamento gera ondas, nenhum comportamento pode ser semelhante a outro ou acontecer igual e ao mesmo tempo que outro, já que os resultados de ondas produzidos por eles nunca serão os mesmos. E também é possível pensar que todos os comportamentos são iguais e acontecem ao mesmo tempo de forma semelhante, seja o latido de um cão ou os dedos digitando este texto, já que todos eles ocupam o “mesmo espaço” e toda onda reproduzida por eles viajarão, de certa forma, pela mesma “matéria”. A “solidão”, neste caso, existe apenas num conceito, é impossível de existir já que não existe nenhum fato acontecendo de forma totalmente isolada. Até mesmo a minúscula partícula que forma uma matéria estática e “inanimada” está sujeita a transformações e tem sua parcela no movimento das ondas, uma vez que a água do lago nunca estará completamente parada. Se pensarmos num espelho que existe no final de tudo, margeando toda a extensão do lago, ao lado e acima, veremos então literalmente o reflexo de nossas questões acerca da vida, a principal delas, “quem somos nós?”. Somos o que está dentro ou fora? As ondas que batem no espelho e voltam são as mesmas para dentro e para fora dele? O que está acima e abaixo deste lago é o campo de submersões avessas, idênticas, que podem ser comparados a um pêndulo de relógio onde a cada variação no espaço cria a ilusão do movimento, já que o pêndulo está em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Esta ilusão se constrói como uma espiral, lançando novamente uma outra onda para um novo campo infinito. A ilusão gerada pelo pêndulo, no caso das dimensões do lago, é o que dá vazão aos pensamentos, onde estamos produzindo ondas neste campo que se confunde com o real e que o real não se pode avaliar ou afirmar já que é todos os lagos e ondas numa matéria só. Desta maneira, qualquer movimento, comportamento, é reflexo do que vem a ser o universo, o que nos abarca, já que ele é um desdobramento em si mesmo, simetricamente, onde reina o princípio das possibilidades.

Formigas



Descobriu tarde que as formigas começaram a invadir o quarto e já tinham deixado no canto da parede um monte de terra vermelha ao lado onde estava a estante de livros, fizeram um formigueiro. 
A sala empoeirada, precisava preparar a casa para os convidados, alguns poucos amigos que viriam comemorar seu aniversário. Lembrou no que havia pensado no dia anterior, gostaria ser carteira por uns dias, bobagens, só para entregar cartas, aquelas encomendas tão esperadas. Tomou café, já era tarde para ela e para as formigas, com uma pá tratou de tirar os novos hóspedes ou a terra deixada por eles. Tapou o buraco com um pedaço de fita crepe, que procurem outro lugar longe dali do quarto.
Não havia dormido bem com a solidão amassando o travesseiro ao lado. Tentou, leu alguns textos, começou o mesmo filme chato da semana passada que não conseguiu sair do primeiro diálogo, lento e nada acontece. Pensou em assistir a outro, mas aquela velha ideia de que só assiste a um novo quando terminar o que está vendo... Não pode ceder a nada, tudo tem que andar com os mesmos passos, senão tropeça e cai. A solidão faz cara feia pra ela nos porta retratos da sala. Arriscou uma música baixa, um café já morno e um cigarro na varanda. Tudo certo quando não se tem nada pra pensar, o que não era o caso. Luzes por todos os lados, vidas que completam a experiência do tempo, sempre as mesmas. Nenhum telefonema na madrugada, já que passou da meia noite e sustentava os trinta anos, seu primeiro hóspede a dividir mais um ano aqueles lençóis cuidadosamente lavados e esticados, oferecendo à cama um aspecto de novo, de recomeço. Quando adolescente, um namorado queria ser o primeiro a lhe dar os parabéns, ligava no primeiro minuto do dia de seu aniversário. Lembranças... Não pode ficar nelas, é preciso ter a casa limpa para as 20hs.
Lá fora as plantas crescem o verde sobre o jardim, agora é que as formigas vieram escolher outro canto fora do mundo lá de fora. Por quê? Nada, nem precisa tentar entender. Basta existir para estes acontecimentos, todos molhados de não entendimentos. A solidão presa não se sabe onde a corroer aos poucos este invólucro de metal. Outro já morto olha do retrato, pede para que não demore. A cera grossa no relógio da sala lustra a madeira e deixa mais solto o tic tac das horas, do pensamento, do vento, das formigas, do jardim, das muitas verdades que tictacteiam por aí sem querer ser vistas ou mesmo revistas. Cansa-se.
Os convidados chegaram quase juntos com o ponteiro das 20hs, tudo pronto. Boas conversas, todas lustradas e treinadas por natos domadores de leões. Nada que não saísse do mesmo saco das coisas de sempre, mas um pouco mais esvaziado e prestes a revelar o que guarda no que ninguém pode ver, saber. Ainda que os gestos estejam sempre acusando uma esquina que oculta o outro lado, aquele em que se pega um ônibus para outro lugar, destino inventado.
Satisfeita pela presença dos amigos, sentiu-se ainda mais só lembrando-se dos travesseiros que esperam por ela marcados pelas noites de insônia. Tentou achar num rosto amigo um companheiro para vida toda, mas todos eles se pareciam com as mesmas fotos antigas da sala de visita. Um olhar meio sóbrio de um amigo deixou escapar o que pra ela fora diagnosticado como “ajuda-me, você me entende”. Não tinha sido bombeiro ou policial para ajudar alguém, era apenas ela, profissão sozinha.
Fim de noite, ou fim de festa, pois a noite ainda continuava sem horas, senhora de si. Despede de cada um com um beijo e agradecimentos. Aquele que queria ser salvo, a olhou por mais tempo a implorar que ficasse. Não, a porta já aberta esperava sugar a visita para o mundo de fora.
Assim como todas as festas, o que sobra é sempre uma conversa que não fora realizada, uma palavra mal dita, uma discreta vontade que é sempre enxaguada pelo álcool, o resto das palavras a gritar alto dentro dos copos, talheres e manchas pela mesa e pelo chão. Tudo isso fora visto por ela ainda encostada à porta pensando para amanhã limpar aquilo. Ainda conversam na sala, riem, bebem, não sabem respeitar a solidão da casa. O corpo sofre.
Evitando olhar-se no espelho, para não ver o que podem ter visto os amigos, entra na velha banheira e demora com um cigarro na mão. Caso fosse. Fosse... caso... Adormeceu.
Milhares de formigas apareceram na forma humana, com a face arredondada. Tomou seu corpo na banheira, levou-a para a cama. A cada toque, picadas lhe davam pequenos choques por todo o corpo. As mãos formigas a correr pela pele, pernas, braços, pescoço, seios. Cada poro, cada choque. Num instante, seu corpo fora tomado por formigas a picar de dentro. A cama eram dois corpos onde do outro podia se ver apenas um pedaço de pele envolvido pela outra névoa que se espalhava.
No dia seguinte, enquanto tomava o café da manhã, lembrou-se de que precisava retirar a fita crepe do buraco das formigas.

terça-feira, 23 de abril de 2013

A Fossa e o Guarda Roupas


          Nem as seculares máquinas do conforto, divulgadas, vendidas e possivelmente empregadas para alívio do trabalho feminino, iriam fazer dela uma mulher moderna. O fogão a gás no meio da cozinha, presente de casamento do pai, misturava o cheiro do novo com uma sensação de rebaixamento. O fogão à lenha não fora desativado e esperava por ela. As faíscas de madeira que crepitavam por efeito da palha ardente em suas mãos davam sentido e dignidade à pele grossa das palmas. As chamas do outro fogão, de origem desconhecida, ela não sabia usar. E o aparelho sem uso abrasava a cólera do marido.
O mar azul de metileno com uma lua flutuante era uma gravura que saíra de uma remota sala de jantar para adquirir o verniz dos óleos da cozinha. O pequeno quadro, um suvenir vindo da infância, a distraía da cozinha. A janela que soprava do quintal o piado martelado das crias impertinentes também a transportava para fora dali. Mas nada competia com o poder olfativo das réstias de alho que sempre direcionavam seu olhar para o que mais interessava, as panelas limpas, dependuradas, as colheres de pau que esculpira, as gamelas disposta por tamanho. O sentido de ordem que herdara da mãe imperava na sua cozinha. E com a ordem vinha a paz, sempre rompida pelo berro do marido, que agora exigia a comida.
Vivia em silêncio. Apresava-se para demorar pouco quando ia à venda comprar as necessidades da casa. De hábitos estranhos, sempre que varria o terreiro recolhia pequenos insetos, animais mortos e guardava-os no bolso do avental. O terreiro grande, sempre limpo, trazia um momento de paz no desfecho da tarde, quando ela sentava-se ao pé da mangueira e ficava a olhar o nada de significados distantes. Uma mulher sem o tempero de uma essência destinada aos homens, facilmente confundida com os torrões de terra arada num campo infértil, como se não existisse e fosse uma extensão daquilo que vivia, casa, paredes e ruínas, janelas apagadas para um espaço de ninguém.
Sofria constantemente agressões do marido que sempre se embriagava e a cada dia criava novas formas de agredir. Humilhações guardadas, caladas, sabidas pelos visinhos e por toda pequena cidade. Os olhos reservavam sonhos no lugar de lágrimas, o corpo queria um espaço que não fosse de dor.
Agora, servia o marido que escorava o rosto nos braços sobre a mesa, gesto típico de quando está embriagado, o almoço tarde, requentado. Com dificuldades, o marido consegue provar a primeira garfada e logo se aborrece, arremessando o prato para fora da mesa e, em seguida, cambaleando, jogando toda a comida pela janela da cozinha, ainda que as panelas lhe queimassem as mãos. O alvoroço tempestuoso do marido fez com que a mulher se retirasse e se metesse num canto qualquer, onde só ela sabia quais eram os valores de seus pensamentos. No momento, as crias disputavam a comida espalhada no quintal.  
Noutro dia, acordou surda. Assustada, derramava pavor nos olhos, as mãos tentando agarrar o que os dedos negavam no espaço, andou pela casa tateando as paredes, como cega, tropeçando nas pequenas crias que esperavam dela todas as migalhas matutinas. Agachou-se num canto da cozinha e pôs-se a chorar um choro miúdo, com as mãos cerradas a segurar o rosto. Olhava para as coisas, um olhar pedindo um ruído que fosse. Nem mesmo as galinhas compunham mais seus ritmos estúpidos e ensaiados. Era silêncio e o marido dormia. Uma hora ia acordar e reclamar o café amargo como ele. Sairia depois e reclamaria ao dono da venda a primeira dose de cachaça do dia.
Nos dias tranqüilos, o marido, depois de almoçar com sofreguidão, senta-se sob a mangueira e descasca o fumo que enrola caprichosamente na palha. Nestas horas a mulher lhe observa de longe e se lembra de outros tempos quando sua mãe se sentava ao lado do pai para as conversas mansas e sem tempo, enquanto ele preparava o cigarro. Sentia vontade de se sentar ao lado do marido.
Venta no quintal. Os bichos empoleirados aguardam temerosos a tempestade anunciada. O portão abre e fecha num ritmo delirante. Clarões de raios distantes. Uma tempestade surda parece oferecer mais perigo e a mulher teima em acender uma vela que não lhe oferece chama. Sua pequena gravura despenca na cozinha e espedaça o vidro da moldura, deixando que o papel de mar e lua voasse e tomasse o espaço da tempestade que agora não deixa sequer o sossego de plagas idealizadas em mundos distantes. Ela vê como um sonho se desfazer no despertar, o seu mar ser agora uma pequena gota de nada numa tormenta que arrasta. Toda uma tempestade surda.
Junto com a tempestade, o marido. Molhado e desfeito. Vendo a mulher de costas, berra como os trovões. Ela segurava um terço e pousava de frente a uma imagem de Nossa Senhora. Bate à mesa, joga vasilhas no chão e nada desperta a mulher que sente, em seguida, o peso de uma mão arrancando-a do lugar. Sofre inúmeras agressões até cansar o marido.
No dia seguinte, sol. O terreiro desajustado, telhas quebradas, parte do galinheiro despencado.
Silêncio.
Varrendo o terreiro com o mesmo hábito, encontra e guarda suas criaturas mortas no bolso do avental.
No guarda-roupa de duas portas onde o vestido amarelado do casamento se sobressai entre os outros maltrapilhos, guarda em uma caixa todos os animais que recolhe. Um dia isso veio a cheirar mal e o marido reclamou, incomodou-se. Recolheu algumas ferramentas e começou a cavar nova fossa, acreditando ser a velha feder tanto.
            Passa um dia sem beber, apenas cavando, subindo e descendo a escada com baldes cheios de terra. Ao principio da tarde, quando a fossa já estava bem funda, a mulher misteriosa recolhe da tuia um galão de gasolina que o marido usa para a serra elétrica. Aproxima-se da fossa, retira de forma abrupta a escada, e, surdamente, despeja o líquido sobre o marido que se desespera e tenta subir pelas paredes de terra já molhadas pela gasolina. Risca o primeiro fósforo que se apaga antes de chegar ao fundo onde o marido escorrega pelas paredes encharcadas. O segundo fósforo também não chega e a mulher se assusta ao ver o marido se aproximar. Derrama o resto da gasolina, num ato de desespero, e acende o terceiro fósforo num pedaço de papel. O clarão se fez naquela hora onde a tarde finda. Nenhum rastro de tempestade, todas as crias se sustentando em suas dignidades de criaturas quase surdas.

sábado, 20 de abril de 2013

Em frente ao número 03


Tira a roupa negra da missa e tenta vestir mais uma vez o vestido de flores de sua mocidade, que já se desfaz nas bordas. Pega uma caixa de costura antiga que guarda no armário e tira de dentro a foto de um homem com seus 32 anos, cabelos bem penteados, terno, gravata e óculos fundo de garrafa. Aperta a foto contra os grandes seios, beija toda a foto já danificada com as marcas do batom. Vai até a escrivaninha, pega a agenda telefônica, na letra D, Diógenes. Disca e deixa chamar. Atende uma voz rouca. Desliga. Vai até a cozinha pegar um copo de água para tomar o remédio. Senta-se na cadeira e desaba, chora. As pernas apertadas pelo vestido apontam veias grossas e azuis. Se queixa de reumatismo e hipertensão. A casa onde vive é escura, de apenas quatro cômodos: cozinha pequena, sala apertada que cabe um sofá e uma estante para a televisão, um quarto e um banheiro. Nas paredes da casa, santos por todos os lados, taco mal encerado. Na estante da televisão, uma foto amarelada de quando criança e uma de seu falecido marido. Não teve filhos, nasceu com um problema no útero. Ao fim de cada choro, se cansa. Deita-se no sofá da sala já impregnado de seu cheiro, liga a televisão e coloca no canal onde um homem com uns óculos intelectuais fala sobre novelas e a vida de pessoas famosas. Adormece.
Já é noite. Acorda e percebe que dormira toda tarde. Vai até a cozinha, bebe um copo com água com mais um comprimido. Sente vertigem, quase desmaia e apóia-se à mesa. Coloca uma das mãos na cabeça e pensa estar sofrendo um novo ataque. Senta-se lentamente na cadeira e espera passar o mal estar, com a cabeça entre os braços apoiados na mesa. Passado, vai até a geladeira e constata que se esqueceu de comprar a carne para a sopa desta noite, come pão velho com queijo derretido na chapa. Já são quase onze da noite, não tem sono. Pega a bíblia e inicia a leitura pela enésima vez. O telefone toca. É o sobrinho de seu falecido marido dizendo que precisa passar um tempo na cidade para estudar, pede para ficar em sua casa por uns tempos, mesmo que tenha que dormir naquele sofá. Ela não o recusa e faz o mesmo discurso para falar se sua vida miserável, olhando para o sofá e pensando num lençol para forrá-lo. O sobrinho chegará ao próximo mês. Precisa arrumar a casa para uma boa impressão. Não consegue dormir bem o resto da noite. Acorda cedo e vai até o açougue comprar a carne da sopa. No açougue, escuta um boato de que o padre estaria tendo um caso com uma mulher. Lembra-se da calcinha deixada atrás do São João Batista. O açougueiro ao perceber sua presença, pede discretamente para que os outros mudem de assunto. Dois quilos de carne moída.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Ladrilhos

De tarde, despeço do tempo
peça de uma hora
na moldura de um quadro que ladra
ouvindo passos detrás de um portão sem tranca
há nessa casa quintal e sala fresca
que repousa uma... não posso ir lá.
o dia, esse agora, é antes do retorno
do amanhã que retorna, retorna.
Voltar é sem ser as luzes que despencam das vistas.
Mesmo assim, ainda que as, não posso contar.
Na rua, essas ruas, cômodas árvores e um azul lento
que provoca detrás dos fados carregados de mar
tão longe, como longe estão as horas dessa
desfigurada tarde já sem moldura, já
dentro me encontro, nessa fresca sala que não posso.
E daqui, sem ver, apenas palavras, tic-tac-teia
um polido ponteiro engrenado pelo pó das marcas
que tornam toda tarde eterna e toda volta inverso regresso
não sei se é volta ou aquilo.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Visita

Sono sonso
o que é além das cristas de um canto 
Descosturo o dia e das linhas faço um manto

despido desperto, pra perto do que me embala
cerro todo mudo, desfaço cristais da sala

embaço 
embaraço
envolvo  

tal vento 

invento
depois
desdigo

sono sonso
sabe
que sonharei
contigo


domingo, 14 de abril de 2013

Bandoneon

No mesmo céu sobrevoam helicóptero e urubus. Cinza, pesado, rabiscado de nuvens, por onde também um guindaste alaranjado desliza soberano e calmo, indiferente aos convidados que chegavam aos poucos, recebidos numa área separada onde a chuva não viria incomodar. É quase noite e o garçom já havia deixado transbordar o refrigerante no vestido de uma senhora de olhos verdes que todos evitavam. Todos se evitavam, na verdade, buscavam alguns grupos de conversas para não deixar evidente que nas festas de família há sempre um por detrás do formalismo que sustentam.
Aqui, caixas de papelão com livros, alguns pigmentos e um rádio desligado. A cama bagunçada do ontem, a tentativa de se encontrar perdido por um desejo que é carne e além do mais, os dedos desobedecendo e insistindo por um corpo que se despia devagar. Toques, bocas a encenar em delicada peça musical cuja trilha é um bandoneon dissolvendo os espaços do quarto, apagando, deixando a luz quente dos corpos. Seios por explorar, cada pinta. Detalhes de um lençol desde já. Pequenas partículas cristalizadas aos sulcos grossos de minúsculas rotas, jogadas em gotas pelo chão, chuva interna a sair dos poros.
Há muitos intervalos não ditos, outros não pensados, não vividos. Dizer que se vive o inteiro de uma vida é mentira.
No fim da noite, um samba bem perdido, uma embriaguez e uma luta de boxe. 
A cama, a mesma, guardada de cheiros que acordaram de um dia que novamente acaba.

terça-feira, 9 de abril de 2013



Hoje o que caminha é uma larva fria
despencando em casulos abertos
ao desembarque sereno do chão
sem um trincar nem ruído se ouve

Rasteja tua insignificância 
pelas frestas de um olhar de cão

Há também outras larvas
cobrindo um corpo vazio
Colar feito de oco
dentro de madrepérolas

Me empresta tua perna
manca que me apoio 
indo em busca
de uma coisa
que mete medo,
diz de onde vou

Tardo


Ensina-me as redes, pescador
Desejo a fisga que nada me empresta
Ensina-me o chão, olhar de terra
Descuido do que não pesco
E quedo nas frias vagas de teu leito
Um peixe que me olha vazio

Quando alta maré tu te pões a sonhar,
Ensina-me as redes que te deita
Quero os juncos retidos em teu peito
As colunas secas também as quero
Essas que sustentam varandas tardias
Onde tu te reclinas a cochichar no tempo

Ensina-me o que vê tuas crianças
Quando sais ao mar 
e delas, sobra o que não vê
Serei então sobras das tuas
redes que retornam
Ao olhar de quem te espera

o destino ser palavra diz de sina

dis
des
in
a

disdesina

uma não palavra inteira

domingo, 7 de abril de 2013

Céu

Olhe o céu. Olhe novamente e outras vezes mais até que ele esteja esgotado de ser céu.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Abril

Pequenas rãs na caixa d'água
tomando a boia como cais
provando a onda
Liturgia de poucas horas
e acalma, 

numa forma desencontrada

Nos vimos sob a copa de
uma esquina
de lá ou de cá
trombamos olhares
que se derramaram 
conforme a chuva

Te apresentei
tico-tico

te pude cem
o que eu tinha

Abril, essa rua 
de uma festa
que não pude ir

o vestido me apertava
senti náusea
ao passar pela barbearia
não pela navalha
Era Abril.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Antes é não saber.
Poema pra Annaline Curado


domingo, 31 de março de 2013

Amor rompe na palavra
És que ser, malogra-se ama.
Rumorincertos
desviasempre quase

Trinca no
abismaberto
ondagulha 
esgotoeco
o eco
o eco



Duas Montanhas



De um lado peças
descartadas
de um jogo
Do outro, livros
que me descontam
os signos

a noite
passagem
De uma solidez intacta

Cabeça que se chocou
Na pasta líquida
De um rio.

sábado, 30 de março de 2013

Bolhas de Sabão

As histórias do mundo poderiam ser escritas por crianças. Imagina a narrativa de uma história da bolha de sabão por uma criança! Uma epopeia onde o herói ou a heroína é uma bolha, bom, uma bolha não tem sexo, melhor assim. Várias bolhas! Umas pequenas outras maiores a debruçar sobre o vento. Nenhum dos heróis da história conseguiu debruçar sobre o vento com a destreza de uma bolha de sabão. O que é uma história de guerra perto do que fazem as crianças ao correr tentando alcançar as bolhas lançadas à imprecisa teia dos ventos? Nenhuma bomba se compara a uma bolha estourando, fragmentada ao toque ingênuo da brincadeira. Não se pode crucificar uma bolha, ela se esquiva tão sábia, tamanha a sua fragilidade. Na igreja, se trocassem os santos por bolhas de sabão, a fé seria essa película fina de quase nada, que se desloca ao acaso. Deus, uma transparência que reflete o mundo na sua delicadeza sem ser maciço e certo, sem ocultar nenhum plano, nenhuma visão e que, por um descuido, se desfaz por completo esse guarda nada dentro.
Se as crianças pudessem escrever as histórias do mundo, talvez seríamos assim leves, soltos ao acaso, transparentes numa brincadeira de vento, de brisa, de quase nada. O mundo seria visto no através, ele que é o que não pode as palavras.



http://www.youtube.com/watch?v=HW5zb2nLs8w

sexta-feira, 29 de março de 2013

Uma criança chora aqui no prédio. Lá fora toca Alcione e as luzes das casas me soltam pra dentro de nada. Um ruído de carro atravessa esses sons pendurados como delicadas conchas em cortinas na porta. Pra quê serve escrever? Jogar essas faíscas de pequenas pontas agrupadas no infinito branco onde nele se perde e se torna rocha desfigurada como areias numa praia vazia, pra quê serve? Obedientes, como a um frade, faz as mãos sua oração na tentativa de cerzir redes abertas nas caldas de uma água viva. Frios fios acumulam no centro a expectativa das ondas. Escrever não é como cortas as unhas, nem pentear os cabelos. É aparar as raízes que saem dos poros quando dentro não há mais espaço, tal como a criança que chora. O choro é o corpo esgoelado de lágrimas, torcido, frágil. Tal como a Alcione esgoelando em caixas e abrindo o apetite dos copos, pedaços vazios contendo o nada, preenchidos pela vontade que ninguém grita e precisa ser comportada nessa grade inteiriça que acomoda os líquidos. Tal como as luzes das casas que enfrentam a noite e ameaçam o silêncio que alarga na forma de palavras.

O Ontem


Na mesma sala, as mesmas sombras do ontem.
O comportar das almofadas, o pano meio solto no sofá.
O café frio dentro da garrafa do ontem e
Um pregador de roupas misturado a tudo
Por cima da mesa de quatro lugares aéreos.

Da janela, a tábua reta de uma paisagem sem gosto.
As mesmas plantas nos seus suspiros verdes,
De raízes acomodadas em vasos “utelares”.

Nesta tábua, antenas e luzes do ontem,
O mesmo assovio,
Ladrões sustenidos no corpo da mesma
Sinfonia conversam.

A rama seca dentro da fechadura
Deixou em teus galhos
Ninhos de pássaros mudos.

A chave não toca.
O ranger da porta é vácuo de passos.

Chegou.

Pesa nos passos o modo que me deixa.
Joga na mesa a chave que me fecha.
Abre na geladeira o frio de uma falta.
Pede por um beijo um corpo que não sente.