domingo, 28 de abril de 2013

Formigas



Descobriu tarde que as formigas começaram a invadir o quarto e já tinham deixado no canto da parede um monte de terra vermelha ao lado onde estava a estante de livros, fizeram um formigueiro. 
A sala empoeirada, precisava preparar a casa para os convidados, alguns poucos amigos que viriam comemorar seu aniversário. Lembrou no que havia pensado no dia anterior, gostaria ser carteira por uns dias, bobagens, só para entregar cartas, aquelas encomendas tão esperadas. Tomou café, já era tarde para ela e para as formigas, com uma pá tratou de tirar os novos hóspedes ou a terra deixada por eles. Tapou o buraco com um pedaço de fita crepe, que procurem outro lugar longe dali do quarto.
Não havia dormido bem com a solidão amassando o travesseiro ao lado. Tentou, leu alguns textos, começou o mesmo filme chato da semana passada que não conseguiu sair do primeiro diálogo, lento e nada acontece. Pensou em assistir a outro, mas aquela velha ideia de que só assiste a um novo quando terminar o que está vendo... Não pode ceder a nada, tudo tem que andar com os mesmos passos, senão tropeça e cai. A solidão faz cara feia pra ela nos porta retratos da sala. Arriscou uma música baixa, um café já morno e um cigarro na varanda. Tudo certo quando não se tem nada pra pensar, o que não era o caso. Luzes por todos os lados, vidas que completam a experiência do tempo, sempre as mesmas. Nenhum telefonema na madrugada, já que passou da meia noite e sustentava os trinta anos, seu primeiro hóspede a dividir mais um ano aqueles lençóis cuidadosamente lavados e esticados, oferecendo à cama um aspecto de novo, de recomeço. Quando adolescente, um namorado queria ser o primeiro a lhe dar os parabéns, ligava no primeiro minuto do dia de seu aniversário. Lembranças... Não pode ficar nelas, é preciso ter a casa limpa para as 20hs.
Lá fora as plantas crescem o verde sobre o jardim, agora é que as formigas vieram escolher outro canto fora do mundo lá de fora. Por quê? Nada, nem precisa tentar entender. Basta existir para estes acontecimentos, todos molhados de não entendimentos. A solidão presa não se sabe onde a corroer aos poucos este invólucro de metal. Outro já morto olha do retrato, pede para que não demore. A cera grossa no relógio da sala lustra a madeira e deixa mais solto o tic tac das horas, do pensamento, do vento, das formigas, do jardim, das muitas verdades que tictacteiam por aí sem querer ser vistas ou mesmo revistas. Cansa-se.
Os convidados chegaram quase juntos com o ponteiro das 20hs, tudo pronto. Boas conversas, todas lustradas e treinadas por natos domadores de leões. Nada que não saísse do mesmo saco das coisas de sempre, mas um pouco mais esvaziado e prestes a revelar o que guarda no que ninguém pode ver, saber. Ainda que os gestos estejam sempre acusando uma esquina que oculta o outro lado, aquele em que se pega um ônibus para outro lugar, destino inventado.
Satisfeita pela presença dos amigos, sentiu-se ainda mais só lembrando-se dos travesseiros que esperam por ela marcados pelas noites de insônia. Tentou achar num rosto amigo um companheiro para vida toda, mas todos eles se pareciam com as mesmas fotos antigas da sala de visita. Um olhar meio sóbrio de um amigo deixou escapar o que pra ela fora diagnosticado como “ajuda-me, você me entende”. Não tinha sido bombeiro ou policial para ajudar alguém, era apenas ela, profissão sozinha.
Fim de noite, ou fim de festa, pois a noite ainda continuava sem horas, senhora de si. Despede de cada um com um beijo e agradecimentos. Aquele que queria ser salvo, a olhou por mais tempo a implorar que ficasse. Não, a porta já aberta esperava sugar a visita para o mundo de fora.
Assim como todas as festas, o que sobra é sempre uma conversa que não fora realizada, uma palavra mal dita, uma discreta vontade que é sempre enxaguada pelo álcool, o resto das palavras a gritar alto dentro dos copos, talheres e manchas pela mesa e pelo chão. Tudo isso fora visto por ela ainda encostada à porta pensando para amanhã limpar aquilo. Ainda conversam na sala, riem, bebem, não sabem respeitar a solidão da casa. O corpo sofre.
Evitando olhar-se no espelho, para não ver o que podem ter visto os amigos, entra na velha banheira e demora com um cigarro na mão. Caso fosse. Fosse... caso... Adormeceu.
Milhares de formigas apareceram na forma humana, com a face arredondada. Tomou seu corpo na banheira, levou-a para a cama. A cada toque, picadas lhe davam pequenos choques por todo o corpo. As mãos formigas a correr pela pele, pernas, braços, pescoço, seios. Cada poro, cada choque. Num instante, seu corpo fora tomado por formigas a picar de dentro. A cama eram dois corpos onde do outro podia se ver apenas um pedaço de pele envolvido pela outra névoa que se espalhava.
No dia seguinte, enquanto tomava o café da manhã, lembrou-se de que precisava retirar a fita crepe do buraco das formigas.

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