sábado, 4 de maio de 2013

Viajando as Vacas

Escrever é ler. Isso. Uma cena, como pode existir nas palavras? Como elas conectam a memória, a fala, o tom, os gestos? Imagine uma escola pública no interior. Aqui é tarde, quase cinco. Sábado calmo, algumas crianças brincam de cartas no passeio lá fora, nessa rua tranquila com pouco tráfego. O que escuto agora é um zumbido de moto, janelas se abrindo, cachorros ao longe e o palavrão das crianças que brigam por causa do jogo. Há algo que não posso entrar, escrever. Não sei o que é. Toda essa tarde, fuga das horas, não completa, não é. Busco nas janelas dos prédios vizinhos alguma pessoa e parece que estão todos vazios, o que devem fazer uma hora dessas? Televisão, internet? Podem estar jogando buraco, algo assim, ou falando no telefone ou enviando e recebendo mensagens. Ou mensagem nenhuma chegou e sobra a cama a oferecer o teto pra olhar, enquanto o tempo passa. Apitou alguma coisa no celular, promoção de créditos. A cozinha limpa, o almoço guardado pra janta. Um pão lambuzado de manteiga acompanhado por um café de mais cedo, sozinho. A cidade. Onde está a cidade? Nas rodovias e na certeza de uma segunda-feira de trabalho. Amanhã, domingo, o que farão? Era sol da manhã num dia bem frio. A arquitetura daquela escola fazia sombra numa parte da escada onde vários meninos sentados liam contos infantis para a avaliação de leitura. Alguns conseguiram uma parte onde batia o sol, outros se queixavam do frio na sombra e uma menina que não lia bem ensaiava sua leitura como se depois de cada palavra houvesse uma vírgula, pausava, pausava, numa dificuldade. Aquela escada é a que dá para a sala da diretora, ninguém gostava, e na mesa dela a professora esperava corrigindo algumas provas até o momento de chamar a primeira criança. O tempo era suficiente pra ler mais de três vezes cada conto, a não ser aquele cheio de vírgulas que a menina não conseguiu ler uma vez sequer. Um menino lia seu conto e sua parte preferida era a que falava de um vaqueiro que ficava viajando as vacas. Viajando as vacas... Como era viajar as vacas? Imaginava o vaqueiro feliz levando suas vacas para passear entre as montanhas, dias de caminhada com todo rebanho de vacas, passando por lagoas, rios, até chegar ao litoral, onde as vacas já estavam, cada uma, de óculos escuros. Lia bem. A professora chamou o primeiro, o segundo... De lá podia ouvir as histórias todas enfatizadas em suas pontuações, importando apenas ler bem. Na sua vez, a sala era ainda mais fria que lá fora na sombra e a mesa enorme com muitos papéis, mesa de madeira grossa, pesada. Começou a leitura sob as lentes dos óculos da professora baixinha que quase desaparecia atrás da mesa e da papelada. Na sua parte predileta, deu um grau à frase onde o vaqueiro viajava as vacas. A professora que acompanhava o conto com outra cópia nas mãos, corrigiu: "vigiando as vacas".

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