Quase dezoito. E nem era pela idade, era tarde. Sabe aquele cheiro? Das coisas vividas que descem junto ao dia no longe? Era pra lá mesmo. Numa lonjura. E chegavam pessoas, umas de chinelos e mãos sujas, outras, mais tarde, de botas e casacos. O fogão aceso crepitava outro cheiro de pele, a fumaça que se sentia no banho aquecido pela serpentina, aquela parede escura onde andavam lagartixas atrás dos insetos menores. Já não se via mais rastro do dia, como narrar? Bom, era assim, anoitece, anoitecia. Cedo, bem cedo, ainda escuro, levantavam os filhos mais velhos pra tratar do gado e tirar o leite, da cama se ouvia o tratamento e levantava aquele cheiro de esterco e curral. Novamente o cheiro, esse de um biscoito doce junto ao café, acordava a gente pra se sentar à mesa dos trabalhos matutinos sendo realizados aos poucos. Depois era correr com o carro de boi até a plantação pra outros acertos. Sol a pino, enxada fazia aço na terra como um violoncelo. Almoço, aquele prato fundo e o copo de limonada com limão capeta. De tarde outros acertos e depois a pausa pra brincadeira, o futebol no gramado que ficava bem em frente a casa, a pescaria, o outro que fazia arapuca pra pegar passarinhos. Pegava e soltava, o bom era ver dar certo, sentir o coração do bicho apressado nas mãos pra saber mesmo que tudo ali passava mais lento, como se pegasse o tempo e dissesse que não, depois podia ele voar pra outras bandas, assentando suas penas em galhos de outras terras, em rincões de outras raças. Ver voar era pausar e ser o de sempre a repetir como o martelado canto da coruja pela noite. Já tanta coisa. Ali mesmo à beira do fogão, a senhora sabia. Perdeu o marido, os pais, e agora se diverte com os filhos falando em casamento e brincando de bola no gramado. Na lonjura leva o pássaro nas suas asas o peso dos dias e faz a curva. Nessa hora é que apareciam gente pra tomar a cachaça, falavam da plantação, da chuva que não veio e do poço que não achou gota d'água no fundão. A pele de porco servida e o baralho que ia até mais tarde, no meio de prosa, de cheiros, histórias. A mesa. A janela pequena. Os quartos. O porão. E lá fora só se vê barulho em camadas e nada além. Dá hora de dormir, abrir e fechar os olhos é o mesmo negrume. Martela a coruja e todo corpo, são ponteiros do tempo sussurrando do amanhã, do amanhã, do amanhã.
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