domingo, 17 de julho de 2022

Com os Pés e o Coração na Terra

 

Com os Pés e o Coração na Terra

 

 

A luz das quatro horas do inverno prevê o recolhimento antecipado de tudo. Dela, as sombras projetadas têm um rastro longo que alcança a noite e o frio. O silêncio que a atravessa são os olhos vigilantes da mata. As árvores vão se afundando num poço escuro, movediço, até toda a mata ter o corpo coberto pela noite. Os cães saem para farejar os restos do dia, as luzes tortas da casa expõem os rumores noturnos:

 

- Você sabe a hora em que nasceu?

- Hum, não me lembro, deve ter aí numa certidão. Por quê?

- Nada. E o dia?                                                                                                   

- Dia 09 de agosto de 1949. Você não se lembrava?

- Não. Não me recordo de data alguma. E seus pais, quem são?

- Isabel e Euclides, seus avós.

- Mãe, desconfio do que vejo e do que lembro.

- E o que você vê?

- Tenho uma janela de vidro em minha frente. O que é isso que eu vejo através dela?

- Uma oficina, talvez um laboratório... O que mais tem aí?

- Não sei dizer, pois não consigo distinguir os corpos. Você consegue ver alguma coisa?

- Também não consigo distinguir. Essa mão, por exemplo, de quem é? Você pode tocar em algo com ela? São seus esses olhos e as imagens guardadas por eles?

- As imagens mudam conforme a luz, se guarda pouco delas, a memória não dá conta sozinha e precisa de uma narrativa. Tudo é um borrão! Meu avô, em minha memória, não tem um rosto definido, ora é um sorriso, ora é um olhar ou as roupas que vestia. Nunca o vejo por completo de modo que eu possa revisitar sua pele tal como eram seus contornos. Remontá-lo seria cruel com a sua imagem, pois não teria uma forma humana, porém eu posso tocá-lo com essas mãos, as palavras. Ao final, terei eu inventado o meu avô, assim como a invento hoje?

- Assim como também as coisas e todas as pessoas mudam conforme a luz, nada em nossa memória é fiel ao que realmente vimos ou vivemos. É preciso remontá-las e muitas vezes reinventá-las. Esses corpos que vemos são retalhos de tantos outros que não é possível distinguir de quem é cada parte. Estão em movimento, como a luz, e podem se aproximar como também mudar de direção. E o que você enxerga agora?

- Já passou das 17hs e começa a esfriar, vou buscar um casaco. Vejo pouco das árvores agora e, daqui a pouco, a noite só não será tão acentuada por que a lua nasce às 19 horas, imagino. Assim, a lâmina azul da lua vazará pelas telhas da penumbra e fará nascer um berro mudo que nos guiará. Você está bem aí?

- Sim, me cubro desse berro mudo. Vá buscar o seu casaco.

 

Minha mãe, sentada à tarde na varanda da casa, tinha em sua frente ramas de favas secas que ela debulhava e separava as semente numa peneira de taquara. As favas, um feijão branco, ela mesma havia plantado. Seriam cozidas com couve em panela de ferro. Seu quintal era rústico, alguns canteiros onde as plantas se misturavam, ervas e hortaliças, pés de feijão andu, a mangueira alta que enchia o chão de abelhas em épocas de manga, as duas goiabeiras que sustentavam a rede onde ela descansava com um livro nas mãos. Seu mundo quintal, de quem nunca conheceu o mar.

 

- Está aí?

- Sim! Vestiu o casaco?

- Vesti! Lembrei-me de uma coisa. Você se lembra da coruja?

- Me lembro. Como são as suas lembranças?

- Uma estrada de areia branca, bem fina, boa de caminhar descalço, ali para os lados do Melgaço, onde galerias de árvores tortas nas duas laterais da estrada, nos convidava a entrar e ao mesmo tempo nos expulsava. Era caminho pra uma casa de jardim muito bonito, onde vivia um casal de velhos que tinha um moinho d’água no quintal, lembra?

- Só não me lembro o nome deles. A casa era azul e tinha beijinhos plantados ao redor. Casa simples, né?

- Casa simples! Naquela galeria de árvores tortas que beirava a estrada, você disse ser onde a coruja morava. A minha felicidade de ter conhecido sua moradia, me fez guardar essa estrada, essa mata e essa casa azul.

- Sinto muito, meu filho, que haja outras memórias guardadas por momentos menos felizes.

- Sabe, uma vez olhei para o céu e não o vi.

- E o que você viu?

- O céu, menos o céu. Eu vi a costura discreta desses retalhos que formavam a colcha estendida sobre mim e percebi que eu precisava olhar para o céu até que ele deixasse de ser céu.

- O céu estava tingido?

- O céu estava tão limpo que foi possível ver nas constelações as personagens destes mitos que nos formam. E você estava lá, reconheço seus olhos quando olho para o céu.

- E nos meus olhos, você reconhece os olhos de seus avós?

- Eles estão por detrás daquelas árvores tortas da estrada de areia fina, onde mora a coruja?

- Sim.

- Mãe, o que tem de cego nas tradições?

- O medo.

 

Andávamos no pasto com nossa mãe, um lugar que existia atrás do muro do quintal e que ela nos ensinou a conhecê-lo, meus irmãos, eu e meus primos gêmeos. Ela com um cajado na mão nos orientando sobre as trilhas marcadas pelo gado e nós correndo à frente, alegres e seguros depois de ter rezado o “São Bento” contra as cobras e os bichos. Pelo caminho, ela nos mostrou um pé de gabiroba e disse para pegarmos, cada um, uma fruta e comer. Antes, era preciso pedir licença e, depois, agradecer à gabiroba pelo alimento. A fruta tinha o saboroso gosto de estar ali. Mais adiante, nossa mãe pediu licença a uma cidreira do mato para arrancar uma folha e nos deu para cheirar. O cheiro marcado do "agora". O dia, com o gado já recolhido no curral, anunciava escandaloso a nossa volta pra casa como voltavam também as maritacas. Pela noite, nossa mãe preparava uma fogueira com a lenha que havíamos ajudado a separar. O estalar da lenha seca, o calor do fogo, o clarão daquele momento acolhedor nos reunia ao redor para ouvir dela suas histórias vividas e inventadas. Num papel escrevemos nossos desejos e o dobramos para arremessá-los à fogueira, a pedido de nossa mãe, para que as faíscas que subiam aos céus pudessem levá-los e, assim, eles seriam realizados.

 

- Realizou, o seu?

- Não me lembro do que escrevi. Onde posso encontrá-lo?

- Se você procurar, não encontrará. É distraído que se encontra. Distraído e em silêncio. Quando o galho de uma árvore em movimento se parecer com um animal que passa.

- Isso me lembra o que não podemos ver durante a noite. Por isso você fazia aquelas fogueiras?

- Sim. Durante a noite, uma sombra pode vir a ser qualquer coisa. Aquela fogueira era para manter aceso o imaginário de vocês. A lua já nasceu?

- Faltam alguns minutos. Agora não é possível ver nada mais lá fora.

 

Herdamos o respeito pela terra, pelas plantas, pela vida... depositados em nós, nos moldando, abrindo nossos olhos nestes clarões que acendiam o imaginário. O que temos em comum, meus irmãos e eu, é o que existe em nós a nossa mãe. E dela, os nossos avós. Neste céu, as constelações nos guiam e nos devolvem a escuridão da mata. Diante desta janela de vidro, tento remontar a minha mãe, cada membro seu, e capturo a imagem que vejo desmontada de mim. Anseio pela lua e sua lâminas azuis para me provocar em silêncio e distraído a imagem de um animal que passa. Assim, posso lembrar, quem sabe, do que queimou naquela fogueira o meu desejo? Terá sido o desejo de minha mãe?

 

- Quantas vezes eu terei que nascer para me encontrar novamente em seu útero?

- Quantas vezes for preciso me matar. Assim como deseja olhar para o céu até que ele deixe de ser céu.

- E isso não me tornará obsessivo?

- Você pode escolher não buscar pelo céu e estará tudo bem. A lua já nasceu?

- Ainda não. Está tudo bem?

- Sim.

- Entre as palavras e os sentimentos há um abismo. As pontes erguidas, para o atravessamento, do que são feitas?

- Do mesmo material que me levou até você e te traz até mim, das tentativas vãs para chegar até onde não nos sabemos, dos fragmentos nossos e de outras pessoas que existem nestes intervalos mudos que completam isso que desejamos remontar. Não há, portanto, uma resposta definitiva.

- Para isso, é preciso levar em consideração as lascas descartadas de uma lapidação?

- Voltar ao estado bruto, original, daquilo que se lapidou, é remontar algo e isso sempre deixará caminhos vagos entre uma parte e outra. 

- Nestes caminhos vagos, existe a figura desfigurada de meu avô, a minha memória borrada, as minhas experiências que completam a forma bruta do que foi lapidado?

- Talvez.

- E o que te define para mim e meus irmãos?

- Uma mistura de experiências particulares onde não estou e não existo, somadas àquilo que eu levei até vocês de minhas experiências temperadas com as experiências de meus pais. Nota que isso se assemelha à busca do princípio do universo quando se observa em grandes telescópios os corpos celestiais?

- Remontar o princípio. Desconstruir o céu. Chega até você.

- Isso.

- A lua está nascendo atrás da montanha! Um clarão! Lua cheia!

- Está linda! Irá amenizar o breu que se vê da sua janela.

 

               Na televisão, o jornal havia anunciado que haveria uma chuva de estrelas cadentes às 4 da madrugada. O ano, não me lembro. Minha mãe me acordou nesta hora e me chamou pra ver o evento. Não havia lua no céu e ele estava limpo. De repente, uma estrela cadente anunciava as outras que viriam. Um céu de estrelas cadentes por todos os lados e direções! O entusiasmo de nós dois ali, na madrugada, o sorriso de minha mãe olhando para o céu, eufórica! A alegria dela me alegrou mais do que as estrelas. Seu corpo inclinado para o alto, quase na ponta dos pés, tornou-a tão grande que eu pude entender que naquele momento ela era uma estrela que passava.

               Agora, a lua entrando com suas lâminas na mata, permite que eu veja a minha mãe sob este berro mudo do clarão. Seus braços lentos cheios de pintas nas mãos, suas unhas delicadas e rosadas, seu corpo vestido de simples e leves panos, o cabelo pintado buscando o ruivo da juventude, as sobrancelhas finas sobre olhos grandes e alegres, a boca também fina sempre com um sorriso pronto e uma gargalhada fácil... Seu modo de sentar cruzando as pernas para dentro delas mesmas, calma, tomada de escuta do que fala as coisas ao redor.

 

- Onde você está agora?

- Com os pés e o coração na terra.

 

José Alberto Bahia

Brumadinho, Julho de 2022

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A Dança do Tempo

 

A Dança do Tempo

 

 

               Estrada de terra, som dos pneus dos carros sobre o chão socado, pedras soltas pelo caminho, poeira, o "mata-burro" à esquerda, a galeria imponente dos eucaliptos que se repetem em longas fileiras onde corredores verticais formam linhas que vão do chão ao infinito, abrindo vagas para espadas de luzes afiadas que nos dilaceram sobre a tela ininterrupta e repetitiva da paisagem. Noutra curva, inclinam-se sobre a passagem as pequenas árvores da mata nativa, arbustos tortos emprestam aos pneus dos carros duas linhas paralelas quase apagadas que rabiscam um só destino neste recôndito trecho. Sob a tenda das árvores, uma lagoa muito parada acolhe o reflexo das copas que se erguem. Após o trecho pisoteado pelo gado, o terreno onde distintas espécies botânicas abraçam a casa do sítio. Uma casa de varandas largas e frescas, cujos arcos emolduram a estrada por onde veio o viajante que, enfim, se abriga. Junto à casa, um terraço aparado pelo cimento deixa à mostra a cozinha com um fogão a lenha e uma mesa desmedida. Lá, um homem vestido do trabalho, apenas o cimo da barba branca aparente no rosto moreno, com suas botas de borracha e chapéu moldado por uma personalidade absoluta, recebe as visitas com apertos de mãos logo que sua esposa, alegre e prazenteira, já as havia recebido com abraços e também apertos de mão secada no pano deitado sobre os ombros. A comida apita seus cheiros sobre a brasa do fogão, a mesa já oferece suas cadeiras que ali assistem às frutas recém-colhidas e à cachaça que se faz notar em primeiro lugar e aguarda a aprovação no estalar dos lábios.

Acomodam-se, são de casa todas as pessoas que chegam. Trazem suas bebidas, organizam-se ao redor da mesa e já predefinem este dia de encontros das histórias não contadas sobre aquelas sempre relembradas. O homem pede licença para tomar banho e volta de barba feita, cabelos bem penteados para trás e algumas mechas teimosas que lhe caem charmosas ao rosto e são de pronto ajeitadas com o zelo das mãos abertas e lentas. No centro da mesa, rodeado pelos presentes que o bajulam, o homem encontra o tempo. Ele então se junta aos demais. Toma sua cachaça, oferece uma dose a outro e o outro faz o mesmo a outro como numa teia sonora alinhada pelos galos. Sua esposa, fiel às receitas da família, animada com todos reunidos, sabe atender às expectativas daqueles que guardam na memória o sabor da última refeição ali compartilhada. A madeira sobre o ferro, a batida de colher sobre as panelas. O sol do meio dia, o cimento quase branco exige pressa a quem se arrisca a atravessa-lo. Logo, a sombra da casa descansa sobre o terraço cobrindo e apaziguando os objetos expostos e tornando o lugar fresco como água guardada em bilha de barro. Da cozinha se vê o pasto onde a mansidão das vacas dita o ritmo deste tempo que rumina paciente por cima do pano da grande mesa. 

As conversas vão se assentando de acordo com as afinidades. Na sala da casa, tios e tias tecem outras conversas em toalhas barradas cujos intervalos são alargados em silêncio. Aqueles que continuam à grande mesa, revezam-se para abrir a geladeira em períodos cada vez mais curtos e buscar outras garrafas de cerveja. Fumaças assopradas para cima embaralham as vistas, dedos batendo sobre as cordas de um violão cujo repertório é sagrado. O dia faz a curva. A intermitente insistência das longas varas de eucalipto cederam ao corte da afiada falta. 

Apoiados pela crescente manifestação anunciada desde que começaram a beber, as conversas passam a exigir outro espaço e dão lugar à dança. No terraço, iluminado apenas pela luz da cozinha e de uma das varandas que é, neste momento, a grande expectadora, a música soa exigente. Acontece ali uma comunhão. Todos se levantam e iniciam suas performances que, como as sementes aladas, sobrevoam amparadas pela incerteza de que vão tocar o chão, numa cumplicidade silenciosa. Na sala, uma das tias que está em tratamento de quimioterapia é resgatada no colo por seu filho e levada para aquele terraço em que todos flutuam. Ela dança de pano amarrado na cabeça, dança de braços abertos, de olhos fechados como se pedisse ao tempo: “Espera um pouco mais, não vá agora!”

O tempo que também voa incerto nas nossas certezas, é a performance da vida. Espantosamente, os grandes eucaliptos extintos pela falta de luz são denunciados pelos faróis dos carros que retornam.     

Noutro dia, a mesma estrada, o chapéu escondendo os cabelos penteados, grisalhos, o pano apoiado no ombro, a brasa do fogão acesa, o gato deitado sobre a mureta, o cachorro que dorme sob um banco, a água irrigando a horta. 

As cadeiras da varanda vazia assistem silenciosas a dança do tempo.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Lata de Sardinha

          Quando criança, acompanhava minha mãe em visitas que ela fazia às casas mais simples que conheci, de chão batido, para conversar com os sertanejos da região sobre assuntos demorados. Era como entrar no oculto de uma roda d’água. Ali, ouvi dizer sobre a feitura da farinha de mandioca e do fubá, das plantações de milho e feijão, coisas que faziam as minhas refeições serem cada vez menos estrangeiras ao mundo que eu conhecia. Ouvi dizer também, dos sertanejos, sobre a música dos carros de boi e aprendi que para o carro cantar melhor é preciso azeitar o eixo das rodas.
          Não conheci, de fato, o estrangeiro, todo ele me soa como os cantos ininterruptos dos carros de boi, zumbem aquele agudo surdo que me faz inventar imagens quase sensoriais como as de um cego. O estrangeiro é também o que não vivi e busco inventar em mim. Assim, uma parte clara e outra escura, uma parcela de verdade e outra de invenção, basta uma lata de sardinha para azeitar o eixo da memória e revisitar o pedaço de chão da minha infância, hoje quase estrangeira.
          Num local reservado da casa, onde chamávamos de barracão, havia dois fogões à lenha, menores, onde nossa avó passava horas fazendo doces ou tingindo panos com sua larga colher de pau em grandes tachos de cobre. Com o pano na cabeça e suor retido nas dobras do tempo, mexia. Lá também viveu e morreu Lolita, uma cadela pequena, a mais adorada de nossa avó, que silenciosamente abocanhava o calcanhar de estranhos.
          Doces de leite, goiabadas cascão, bananadas, doces de figo que a gente misturava ao creme de leite, sugestão dela, da avó, todos eles saiam do chão de cinzas e do ar escaldado do barracão. O doce de leite era cortado em losango que minha mãe teve de comer toda uma travessa dessas por ter desobedecido e pegado um antes da hora, quando criança. E, talvez por isso, evitava os losangos.
          Biscoitos e bolos também eram especialidades da avó. A massa presa aos dedos, as mãos que amassavam até o ponto certo e a aliança de casamento ao lado da tigela. Os biscoitos enrolados, cada um em suas formas, eram, depois de prontos, afundados no café para melhor saborear, como se saboreássemos também os espaços daquela cozinha com as telhas empretecidas da fumaça do fogão à lenha, quase sempre aceso. A avó, sentada à cabeceira da mesa, partia com as mãos pequenos pedaços de seus biscoitos e, em silêncio, provava-os enquanto filhos e netos se debruçavam sobre a mesa para bem compartilhar com as conversas o momento do café da tarde. Não havia outro mundo além deste diverso que o sabor permitia. Partir os biscoitos com as mãos, quase num ato religioso, ao invés de leva-los direto à boca, era como repartir e compartilhar na memória a lembrança de quem ela reservaria uma parcela daqueles biscoitos, a outra parcela ela dividia entre a gente e suas lembranças. 
         O quarto de costura ficava ao lado da despensa onde se assavam os biscoitos e bolos, separados apenas por uma parede. Como o teto não era forrado, nossa avó costurava enquanto media o cheiro que vinha do forno. Dias de bolo, todos sabiam: o cheiro lembrava-nos da sua casca fina e miolo macio, do quanto eram bons acompanhados do leite com café.
          Nesses dias de bolo, toda espera tinha uma ocupação, pedíamos a avó para manejar um pouco a batedeira que tremia em nossas mãos, causando descontrole e o risco de não ter o bolo no café da tarde. Ela assumia a batedeira e, já de fôrmas untadas, pedia para que procurássemos latas de sardinha pelo quintal, lugar que guardava todo tipo de sorte. Enquanto não tivéssemos cada um a sua lata, não cessávamos as buscas. Uma vez encontradas, ela as lavava bem, esterilizava com álcool e amassava com um martelo as pontas cortantes que sobravam. Untadas, derramava a mistura do bolo em cada uma além da que já se assentava na fôrma maior. Ver o bolo crescer nas latinhas através do vidro escuro do forno era como receber um presente adiantado junto à expectativa da véspera. Era como dar à nossa infância a própria infância, nos reconhecendo em nossas terras, retirando de nós a casca de estrangeiros de nós mesmos, onde sabíamos o lugar da criança que provaria o bolo nas latas de sardinha e do adulto que retiraria fatias da fôrma maior. Deste modo, cada neto com sua lata onde havia uma mistura doce do claro e do escuro - bolo de duas cores - experimentava, num exercício camuflado do tempo, a parte clara primeiro, deixando o escuro (de chocolate) para as ordens do depois, para o futuro que tínhamos dentro da pequena lata e que era saboreado sem grandes receios. 

terça-feira, 5 de março de 2019

Conversas


É possível sentir da terra os inúmeros ruídos, seus trovões internos que anunciam tempestades, o som das pontas ínfimas das raízes de uma planta que abrem espaços no maciço solo, se movimentando como tentáculos e produzindo deste movimento ranhuras sonoras que percorrem os vãos que são as casas ocupadas por corpos ancestrais responsáveis pela vida e pela morte. 

Um homem em solidão cuida da horta, mesmo que o vento esteja forte e a chuva é vista chegando, nada disso o atrapalha. É essa a imagem que vejo agora da janela da cozinha: um homem, ao longe, capinando canteiros de uma horta. Não há câmeras, ele não é um ator, não sabe que eu o vejo, é apenas seu corpo curvado com os movimentos dos braços levando e trazendo a enxada e o cansaço físico aparentemente menor do que a obrigação. Eu o conheço, é um sujeito de pouca fala, tímido. Ali, não se difere da vegetação, é como os movimentos das folhas das árvores, misturado à paisagem, ao vento, ao cheiro de terra molhada. Certamente ele tem os canais da escuta abertos neste momento. Se por algum instante ele se esvaziar, terá os seus vãos conectados com os da terra e facilitará o caminho das vozes desses corpos ancestrais que lhes trarão as sensações de uma escuta quase imperceptível.
Nada escutamos quando a escuta está bloqueada por outras tantas falas que existem no salão das coisas mundanas. O amor é também a escuta, sem julgamentos, sem resquícios do moral. Escutar a terra é tatear no escuro, não usar os olhos e não ter ouvidos. É escutar sendo surdo, ver sendo cego. A cegueira absoluta, o breu, atiça os sentidos da audição e todo som ganha forma e é possível ser visto em camadas como um corpo tridimensional. Assim também a surdez absoluta atiça os sentidos da visão, criando em todo o corpo canais de escuta que transformam toda vibração em fragmentos de outro corpo possível de ser visto. A cegueira e a surdez, ambos anulados, atiçam o olfato e o cheiro passa a representar a importante essência que nos conecta aos outros seres, sem que estes precisem ser vistos por nós. O tato existirá num lugar onde a sensação é um corpo que nos esbarra e é possível ser sentido. Tateamos este corpo, sentimos seus cheiros, escutamos suas vozes sem saber, pois o saber não é mais útil neste lugar. Ele é usado por nós quando nos reencontramos com as palavras. A razão é inútil, assim como todas as ciências. Adaptamo-nos a ver (ver é diferente de enxergar) com o recurso da razão e ela nos cega. Todo objeto para ser visto é preciso que haja luz (razão) e não o conseguimos ver se ele estiver iluminado por todos os seus pontos (razão excessiva). A razão excessiva nos conecta ao equívoco. Sendo assim, o que nos possibilita enxergar é a combinação de luz e sombra. Sem a sombra, o objeto todo iluminado é apenas uma imagem borrada de luz onde não conseguimos ver os seus detalhes, as suas particularidades. A luz ensina aos olhos que não precisamos apenas dela para enxergar, que muitas vezes são as sombras que guardam a essência do que é visto. A luz pode ser representada pela vida praticada enquanto estamos acordados. As sombras são os sonhos, os intervalos. E estes sonhos são fontes de uma transmissão que não encontramos frequência enquanto despertados demais, cheios de razão. Sonhar acordado, desligar a razão, acessar as sombras, tatear sem pedir por luz, viver a escuridão, a cegueira, entrar nos caminhos vazios dos canais da escuta é como olhar para o céu até que ele esteja esgotado de ser céu. Olhar e olhar muitas vezes mais até extinguir do céu os nossos conceitos e libertá-lo. Quando retornamos às palavras, somos também o que o mundo das sombras tem a dizer através de nós. Somos a fala da terra, do solo, parte daquilo que escutamos. Entendemos que o que falamos é em nós o mundo e o que ele nos ensina a partir das suas infinitas camadas de escuta.
Acredito ter sido o sol a nos ensinar as palavras. Quando ele ilumina a parte do mundo onde estamos, escutamos com os olhos o que tem a nos dizer as coisas através das cores. Para apontar, nomear, ter como referência aquilo que se vê, foi preciso primeiro grunhir, soltar qualquer ruído que pudesse vestir as coisas de palavras. Antes, a luz havia moldado os olhos, assim como o som moldou os ouvidos, o cheiro as narinas, o ar a voz. Os sentidos, todos eles, são mecanismos despertados para o universo. Existe o som sem a escuta, as cores sem os olhos e a voz sem o ar. O que sentimos basicamente nos serve de instrumentos para sobrevivermos, mas também é uma forma do universo sentir suas vibrações a partir de nós e das tantas outras criaturas existentes, como se fôssemos canais, antenas ou formas de sentir e viver. A sobrevivência pode ser tratada de forma mecânica: dormir, acordar, comer, trabalhar, transar, dormir. Uma vida assim é pouco erótica, transgredir essas ordens é se relacionar com o mundo eroticamente. Se sujar do mundo, ter as nossas partes expostas, nuas, nossos corpos misturados ao pó, à lama, às pedras, às vegetações, enfim, nos dá em troca a memória acesa que ilumina as nossas noites escuras. Essa relação erótica não é abusiva, não rompe com as linhas da liberdade, não é agressiva. Ela preenche as vagas dos intervalos que existem em cada gesto, em cada palavra com as memórias do mundo. As partes vagas dos intervalos são canais por onde a escuta se manifesta -também eroticamente -, são as sombras. Em cada célula da voz daquele que se sujou é possível escutar as vozes dos intervalos, encharcadas do mundo e do universo, onde o corpo se completa do líquido infinito que caminha feito ondas a nos partir inteiros e nos revelar uma casca aberta expondo tudo que existe. As infinitas memórias voam como o ar, atravessa-nos com suas pontas de vida e morte, passam por entre os nossos vãos onde despertam as nossas escutas.
Visitei outro dia um benzedeiro, o Sr. Cristiano, e em nossas conversas ele me disse que para benzer é preciso ter pureza (ele usou uma palavra mais original, que não me recordo agora). Por essa razão, consegue ver e escutar o que traz cada pessoa, sem que ela precise dizer qualquer palavra. Assim, ele consegue benzer e curar. Hoje tem 81 anos, começou a benzer aos 16. Disse que não sabe ler e escrever, que as orações apareceram em sua cabeça. Começou a trabalhar aos 7 anos na lavoura e desde sempre trabalhou com a terra, hoje é jardineiro. Seus canais de escuta estão dilatados, consegue curar uma pessoa mesmo que ela esteja muito longe. Consegue expulsar cobras e escorpiões de um terreno, com suas orações. De que modo? Certamente conversa com os espíritos destes animais, obrigando-os a deixar o local. Há aí muito mistério que ele, na sua simplicidade, tem guardado.
O homem que capinava a horta, que eu via da janela da cozinha, já deve estar dormindo. O que sonha uma pessoa com tamanha humildade? Seu corpo cansado sobre a cama depois de um dia em que várias tarefas impostas a ele foram cumpridas e outras tantas ainda por cumprir devem martelar em sua consciência o dever que nunca se esvazia. Mesmo em seu rosto descansado se vê a preocupação em ter que preencher os pratos que sempre estarão presentes na mesa de jantar e jamais se cansam de esvaziar.
A memória é uma bagagem suficiente. O esquecimento, uma dádiva.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Enxurrada

A estrada é de terra, essa. 
Por cima dela, uma montanha. 

A montanha é de pedra 
e de terra e de raízes 
e pequenas árvores. 

O mês é janeiro 
e a chuva veio 
nos ventos 
dos meses passados. 

A chuva caiu sobre 
a montanha 
e sobre a casa 
e sobre a grama 
e o antigo galinheiro. 

A chuva não é de pedra, 
mas o telhado soou 
a cada gota o seu tamborim 
de cerâmica 
como se fossem as gotas 
dedos de pedra 
de um percussionista. 

O córrego foi desenhado pela água 
e se encheu de chuva, 
passou por cima do canto do galo, 
apagou da lama as pegadas da criação, 
varreu o terreiro, 
abafou o chiado da panela no fogão, 
gotejou na sala, 
no quarto, 
em cima da cama, 
abafou também as vozes 
de dentro da casa, 
o córrego transbordou 
junto com a fé, 
um terço corre feito enxurrada 
nas mãos da senhora 
que sopra sua oração. 

A chuva e a oração. 

A janela nada vê 
além da cortina branca 
encharcada. 

Nem pio, o mundo é uma pia. 

Escurece, como todos os dias, 
quando chove antes da noite. 
A noite, atrasada, apaga 
o mundo borrado 
e no sem vê só se escuta 
a sombra do copo de água benta 
que agita-se na parede 
iluminada pela vela. 

No prato, a colher persegue 
o grão cozido da panela muda 
e o metal nos lábios 
é mais frio que a chuva, 
ainda que tenha roubado 
da comida o calor fugaz. 
A brasa. 
O tição são os olhos do gato 
adormecendo. 
Abrasa a esperança 
que aquece a cama 
e daquilo que é silêncio 
se ama como correnteza, 
enxurrada, 
pra dentro dos lençóis. 

Amanhece 
e a estrada de terra 
agora tem suas veias expostas, 
por onde passou 
o que se derramou 

e foi embora.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

De mais cedo

Ontem, pela manhã, o arbusto de folhas roxas
havia sido em parte destroçado
Por um animal grande que ronda abaixo das estrelas
com sua pata sobre a terra pisoteada
pelo sol.

Hoje, pela manhã, o compadre soube da poda
Do que se estragou do arbusto de folhas roxas.

Veio pedir os galhos destroçados para deles fazer mudas.
Estavam sobre as folhas das piteiras que apodrecem
Sobre a terra de mandiocas.

Com tesoura, calmamente, separou pequenos talos
Mãos que conhecem a geografia de uma enxada
Enquanto no fogo a água acusava pequenas bolhas
Tímidas, aquecidas pelo desejo do café amargo.

Sentamos os dois, trocamos no hálito o hábito da prosa
E do café pela manhã, as demandas dos próximos dias
Quando preparamos a surpresa sabida para surpreender-nos
Durante o tempo em que novas velhas bolhas anunciam
Outras cadeiras puxadas, próximas à mesa, acompanhadas
Por pares de pernas cruzadas com café. 

Logo mais, a comadre veio depois que acabou a missa
- Afinal, é domingo de manhã –
Trazer a lona pesada para proteger o tear.
Disse ter pressa, infinitos braços, pois Chico tem as pernas doentes
E precisa chegar para sentar ao sofá e respirar.
Respirar o dia arrastando passado. 

Outra comadre, mais tarde, veio com sua companheira
Abraços e sorrisos, entraram, ergueram uma casa, 
queijo e goiabada, o café de mais cedo
Ovos sobre a mesa, levaram cinco deles. 

O vento, visita constante, leva-nos aos outros
para dentro das casas sem ter os pés limpos no tapete da entrada.

Outro compadre, ladrou o cão, apoiou-se na porteira.
Aceno, que entre com seu baú.
Mãos sujas do barulho que mais cedo
Soava de sua casa, sinfonia do domingo de quem não para.
Mãos apertadas, entramos os dois.
Café de mais cedo e um pedido:
Broca que fura alumínio.
Broca universal, disse-me um vendedor.
Tanto é a palavra universal, o compadre olhou impondo
Dúvida. 

O dia ilumina intenso o socado chão,
O ninho do guacho respeita as vontades do vento
E logo sua silhueta apenas no findar rubro duro
Que se encerra detrás e diante de nós.
Amanhã, serei eu a visita-los.
Desde suas presenças, respeitamos
As vontades dos ventos e trocamos
Pequenas coisas que não se vê
E que irão dormir em nossas camas
E que irão acordar no que se encerra.
No horizonte, o desejo desperta

Da esperança, a felicidade.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Duas Pedras

Com as mãos nos olhos, agarrou as pedras
Duas pedras frias ausentes que se destinam
A serem miradas na paisagem.
Roubá-las, as duas, para que se despenquem
Do rosto, abrindo caminhos por um corpo montanha,
Caindo decisivas às margens de um rio.
Desde ali, uma lua meia lua as mira
Percorrendo o leito das águas azuladas entre pequenos seixos.
Tantos olhos compridos como serpentes vão
Até o improvável, um largo que se acosta nas margens do infinito.
Tantos olhos duros que tem as cinzas do que é tempo, o escavado.

Sobre a sede de uma rês, fendas abertas caminham.
Duas pedras negras soltas no corpo montanha
Preenchem a vaga de uma muralha remota
Suspensa e fluida erguida por ninguém.

Este é seu povo, seu quintal, sua casa, sua cama barco e vela
E a curva que se apresenta contém nas extremidades duas mãos.
Seus olhos arrebatados abrem trincas sobre as pedras
Por onde sinaliza o véu branco infindável do leite destinado
a saciar a fome do mundo e a tecer seus restos nas bordas do infinito.