Com os Pés e o
Coração na Terra
A luz das quatro
horas do inverno prevê o recolhimento antecipado de tudo. Dela, as sombras
projetadas têm um rastro longo que alcança a noite e o frio. O silêncio que a
atravessa são os olhos vigilantes da mata. As árvores vão se afundando num poço
escuro, movediço, até toda a mata ter o corpo coberto pela noite. Os cães saem
para farejar os restos do dia, as luzes tortas da casa expõem os rumores
noturnos:
- Você sabe a hora em que nasceu?
- Hum, não me lembro, deve ter aí numa
certidão. Por quê?
- Nada. E o dia?
- Dia 09 de agosto de 1949. Você não se
lembrava?
- Não. Não me recordo de data alguma. E
seus pais, quem são?
- Isabel e Euclides, seus avós.
- Mãe, desconfio do que vejo e do que
lembro.
- E o que você vê?
- Tenho uma janela de vidro em minha
frente. O que é isso que eu vejo através dela?
- Uma oficina, talvez um laboratório...
O que mais tem aí?
- Não sei dizer, pois não consigo
distinguir os corpos. Você consegue ver alguma coisa?
- Também não consigo distinguir. Essa
mão, por exemplo, de quem é? Você pode tocar em algo com ela? São seus esses
olhos e as imagens guardadas por eles?
- As imagens mudam conforme a luz, se
guarda pouco delas, a memória não dá conta sozinha e precisa de uma narrativa. Tudo
é um borrão! Meu avô, em minha memória, não tem um rosto definido, ora é um
sorriso, ora é um olhar ou as roupas que vestia. Nunca o vejo por completo de
modo que eu possa revisitar sua pele tal como eram seus contornos. Remontá-lo
seria cruel com a sua imagem, pois não teria uma forma humana, porém eu posso
tocá-lo com essas mãos, as palavras. Ao final, terei eu inventado o meu avô,
assim como a invento hoje?
- Assim como também as coisas e todas
as pessoas mudam conforme a luz, nada em nossa memória é fiel ao que realmente
vimos ou vivemos. É preciso remontá-las e muitas vezes reinventá-las. Esses
corpos que vemos são retalhos de tantos outros que não é possível distinguir de
quem é cada parte. Estão em movimento, como a luz, e podem se aproximar como
também mudar de direção. E o que você enxerga agora?
- Já passou das 17hs e começa a esfriar,
vou buscar um casaco. Vejo pouco das árvores agora e, daqui a pouco, a noite só
não será tão acentuada por que a lua nasce às 19 horas, imagino. Assim, a lâmina
azul da lua vazará pelas telhas da penumbra e fará nascer um berro mudo que nos
guiará. Você está bem aí?
- Sim, me cubro desse berro mudo. Vá buscar o seu casaco.
Minha mãe, sentada à
tarde na varanda da casa, tinha em sua frente ramas de favas secas que ela
debulhava e separava as semente numa peneira de taquara. As favas, um feijão
branco, ela mesma havia plantado. Seriam cozidas com couve em panela de ferro.
Seu quintal era rústico, alguns canteiros onde as plantas se misturavam, ervas
e hortaliças, pés de feijão andu, a mangueira alta que enchia o chão de abelhas
em épocas de manga, as duas goiabeiras que sustentavam a rede onde ela
descansava com um livro nas mãos. Seu mundo quintal, de quem nunca conheceu o
mar.
- Está aí?
- Sim! Vestiu o casaco?
- Vesti! Lembrei-me de uma coisa. Você
se lembra da coruja?
- Me lembro. Como são as suas
lembranças?
- Uma estrada de areia branca, bem
fina, boa de caminhar descalço, ali para os lados do Melgaço, onde galerias de
árvores tortas nas duas laterais da estrada, nos convidava a entrar e ao mesmo
tempo nos expulsava. Era caminho pra uma casa de jardim muito bonito, onde
vivia um casal de velhos que tinha um moinho d’água no quintal, lembra?
- Só não me lembro o nome deles. A casa
era azul e tinha beijinhos plantados ao redor. Casa simples, né?
- Casa simples! Naquela galeria de
árvores tortas que beirava a estrada, você disse ser onde a coruja morava. A
minha felicidade de ter conhecido sua moradia, me fez guardar essa estrada,
essa mata e essa casa azul.
- Sinto muito, meu filho, que haja
outras memórias guardadas por momentos menos felizes.
- Sabe, uma vez olhei para o céu e não
o vi.
- E o que você viu?
- O céu, menos o céu. Eu vi a costura
discreta desses retalhos que formavam a colcha estendida sobre mim e percebi
que eu precisava olhar para o céu até que ele deixasse de ser céu.
- O céu estava tingido?
- O céu estava tão limpo que foi
possível ver nas constelações as personagens destes mitos que nos formam. E
você estava lá, reconheço seus olhos quando olho para o céu.
- E nos meus olhos, você reconhece os
olhos de seus avós?
- Eles estão por detrás daquelas
árvores tortas da estrada de areia fina, onde mora a coruja?
- Sim.
- Mãe, o que tem de cego nas tradições?
- O medo.
Andávamos no pasto
com nossa mãe, um lugar que existia atrás do muro do quintal e que ela nos
ensinou a conhecê-lo, meus irmãos, eu e meus primos gêmeos. Ela com um cajado
na mão nos orientando sobre as trilhas marcadas pelo gado e nós correndo à
frente, alegres e seguros depois de ter rezado o “São Bento” contra as cobras e
os bichos. Pelo caminho, ela nos mostrou um pé de gabiroba e disse para
pegarmos, cada um, uma fruta e comer. Antes, era preciso pedir licença e,
depois, agradecer à gabiroba pelo alimento. A fruta tinha o saboroso gosto de
estar ali. Mais adiante, nossa mãe pediu licença a uma cidreira do mato para
arrancar uma folha e nos deu para cheirar. O cheiro marcado do
"agora". O dia, com o gado já recolhido no curral, anunciava
escandaloso a nossa volta pra casa como voltavam também as maritacas. Pela
noite, nossa mãe preparava uma fogueira com a lenha que havíamos ajudado a
separar. O estalar da lenha seca, o calor do fogo, o clarão daquele momento
acolhedor nos reunia ao redor para ouvir dela suas histórias vividas e
inventadas. Num papel escrevemos nossos desejos e o dobramos para arremessá-los
à fogueira, a pedido de nossa mãe, para que as faíscas que subiam aos céus
pudessem levá-los e, assim, eles seriam realizados.
- Realizou, o seu?
- Não me lembro do que escrevi. Onde
posso encontrá-lo?
- Se você procurar, não encontrará. É
distraído que se encontra. Distraído e em silêncio. Quando o galho de uma
árvore em movimento se parecer com um animal que passa.
- Isso me lembra o que não podemos ver
durante a noite. Por isso você fazia aquelas fogueiras?
- Sim. Durante a noite, uma sombra pode
vir a ser qualquer coisa. Aquela fogueira era para manter aceso o imaginário de
vocês. A lua já nasceu?
- Faltam alguns minutos. Agora não é
possível ver nada mais lá fora.
Herdamos o respeito
pela terra, pelas plantas, pela vida... depositados em nós, nos moldando,
abrindo nossos olhos nestes clarões que acendiam o imaginário. O que temos em
comum, meus irmãos e eu, é o que existe em nós a nossa mãe. E dela, os nossos
avós. Neste céu, as constelações nos guiam e nos devolvem a escuridão da mata.
Diante desta janela de vidro, tento remontar a minha mãe, cada membro seu, e
capturo a imagem que vejo desmontada de mim. Anseio pela lua e sua lâminas
azuis para me provocar em silêncio e distraído a imagem de um animal que passa.
Assim, posso lembrar, quem sabe, do que queimou naquela fogueira o meu desejo?
Terá sido o desejo de minha mãe?
- Quantas vezes eu terei que nascer
para me encontrar novamente em seu útero?
- Quantas vezes for preciso me matar.
Assim como deseja olhar para o céu até que ele deixe de ser céu.
- E isso não me tornará obsessivo?
- Você pode escolher não buscar pelo
céu e estará tudo bem. A lua já nasceu?
- Ainda não. Está tudo bem?
- Sim.
- Entre as palavras e os sentimentos há
um abismo. As pontes erguidas, para o atravessamento, do que são feitas?
- Do mesmo material que me levou até
você e te traz até mim, das tentativas vãs para chegar até onde não nos
sabemos, dos fragmentos nossos e de outras pessoas que existem nestes
intervalos mudos que completam isso que desejamos remontar. Não há, portanto,
uma resposta definitiva.
- Para isso, é preciso levar em
consideração as lascas descartadas de uma lapidação?
- Voltar ao estado bruto, original,
daquilo que se lapidou, é remontar algo e isso sempre deixará caminhos vagos
entre uma parte e outra.
- Nestes caminhos vagos, existe a
figura desfigurada de meu avô, a minha memória borrada, as minhas experiências
que completam a forma bruta do que foi lapidado?
- Talvez.
- E o que te define para mim e meus
irmãos?
- Uma mistura de experiências
particulares onde não estou e não existo, somadas àquilo que eu levei até vocês
de minhas experiências temperadas com as experiências de meus pais. Nota que isso
se assemelha à busca do princípio do universo quando se observa em grandes
telescópios os corpos celestiais?
- Remontar o princípio. Desconstruir o
céu. Chega até você.
- Isso.
- A lua está nascendo atrás da
montanha! Um clarão! Lua cheia!
- Está linda! Irá amenizar o breu que
se vê da sua janela.
Na televisão, o jornal havia anunciado que haveria uma chuva de estrelas cadentes às 4 da madrugada. O ano, não me lembro. Minha mãe me acordou nesta hora e me chamou pra ver o evento. Não havia lua no céu e ele estava limpo. De repente, uma estrela cadente anunciava as outras que viriam. Um céu de estrelas cadentes por todos os lados e direções! O entusiasmo de nós dois ali, na madrugada, o sorriso de minha mãe olhando para o céu, eufórica! A alegria dela me alegrou mais do que as estrelas. Seu corpo inclinado para o alto, quase na ponta dos pés, tornou-a tão grande que eu pude entender que naquele momento ela era uma estrela que passava.
Agora,
a lua entrando com suas lâminas na mata, permite que eu veja a minha mãe sob
este berro mudo do clarão. Seus braços lentos cheios de pintas nas mãos, suas
unhas delicadas e rosadas, seu corpo vestido de simples e leves panos, o cabelo
pintado buscando o ruivo da juventude, as sobrancelhas finas sobre olhos
grandes e alegres, a boca também fina sempre com um sorriso pronto e uma
gargalhada fácil... Seu modo de sentar cruzando as pernas para dentro delas
mesmas, calma, tomada de escuta do que fala as coisas ao redor.
- Onde você está agora?
- Com os pés e o coração na terra.
José Alberto Bahia
Brumadinho, Julho de 2022