quinta-feira, 24 de abril de 2014

Fio um somar

Também, como nas tuas, 
nas minhas mãos os fios
e é só um somar 
envolto em si, emaranhado complexo.
os todos a ponta final
fazer falamos falo o nada
como frase ao revés
no entalhe derradeiro que sobra 

segue, cria a vontade figura da volta.
volume que quer sobrevir
a si mesmo
assim feitura, embondo, 

enlace

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Pele

Me falta cor
 e corpo

os fios, demais espalhados entre
[é preciso ver a lama seca
por uma lente mecânica]
ruivos quase nulos, inibe.

A fala, ranhura albina de uma
casca que se acomoda ao pé do que nasceu,
não sai de seu dentro, retorna ao contato
dos limites ovais e
ensurdece pra dentro da casca.

No momento da fala, a tempestade
que virá cair longe do campo dos olhos.

Falar me anula a visão.




domingo, 30 de março de 2014

Toda palavra depois se molha

Chuva ocupa o espaço. Uma cortina de gotas. 

O vento, tal como o que antecede as palavras, está no gesto, o olhar, no nervo que contrai buscando o sopro que logo sairá nos tons erguidos da fala, assim ele anuncia a chuva.

Chuva é o espaço dizendo espaço nas suas lacunas, quem não se protege se molha de espaço. São as vagas que molham, no ventre do entre, arranca palavras, faz correr a gente pra debaixo do toldo verde. Conversas molhadas nascem.

o pingo
go
teja 
sem trégua
num texto re
lido 
telha
de zin
co
teto
reto
te
ta
colo
nial
não soa o sino
       porém o toca
seus próprios sinos encontram o limão pequena esfera descendo seu suco no avesso da cas
ca

A chuva não se opõe à queda. Chuva é o que chove, pensamento chove, corpo chove pra dentro da terra. É de chuva os rios, as árvores, a vida é chuva que molha dentro. A música é chuva e chuva música do tempo no instrumento do espaço. Temporal é ronco de chuva, estrondo que cai em grossas gotas, ampliando o corpo de toda tormenta, fecham as janelas ou deixam entrar, cobre a semente que faz nascer um corpo imenso que nos espalha e nos leva para ser mundos, nossos silêncios desconhecidos de fronteiras, água corrente absoluta em travessias.

Não terá a chuva nos ensinado a escrever? A Chuva reinaugura os objetos e as coisas como faz a escrita. Reinaugura o templo de Ártemis e os manuscritos de Heráclito e também as sandálias de cobre daquele que sumiu. Ecoa no chiado intermitente a cera derretida das asas de um herói e nos cantos louvados junto às ramas de milhos que escondem a terra. Experimentamos num só tempo o corpo da mesma chuva.

Agora há pássaros se protegendo em galhos para depois - como há muito - nos lembrar que este é um lugar de todos, uma voz que nunca se cansa. 



sexta-feira, 28 de março de 2014

~~~~~~~~~

água cau ságua causa águ acau sai nér ciágua 
cau sagu aca usa in ér ciá gua caus a inérci a

quinta-feira, 27 de março de 2014

Fantasma

Fantasma é fumaça desatenta
Que não se olha, nem se orienta
Na capela o sino surdo
O corpo mudo de espera
Que deseja que a noite arda
Que o sal da praia invada
O desejar secreto
das pequenas conchas
Ao perceber a tarde
Se orienta e se invade
De gotas do mar
Fantasma é corpo
É alma que não se sabe
Um dia de pele, oco
Buscando o bronzear da tarde.


Para Shima

Caminha

Caminha que teu dorso é só
E se consome, auguro do tempo
Caminha e deixa teus pés
Como faíscas do presente
Caminha e leva tua carga
Que te constrói as provas
Caminha a resistência
De uma gravidade
Mesmo que volte, caminha
Caminha a terra,
Ofício das noites
Caminha a larva,
Desejo de reduzido porte
Caminha,
Teu céu,
Ventura dos homens,
Abertura de invulgar culatra.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

i

Todas as portas do armário fechadas. Me canso de olhar pra elas. Basta um vento para abrir as que não possuem chaves e me irritar, elas devem ficar fechadas assim como o chão limpo e a mesa organizada com um vaso no centro. Saio de onde estou, normalmente em repouso, e fecho as portas. Não há nada dentro, talvez seja isso que não quero ver, ver que não há nada. Posso colocar ali dentro tudo aquilo que não quero ver e que vejo diariamente quando ocupo com os olhos os outros cômodos da casa. Guardar pra não ser visto, assim como a mala que guarda coisas que nunca precisarei usar no dia a dia e se um dia a abro e penso desfazer de tudo aquilo, me rendo ao barato de deixar ali pra nada. Os documentos também estão guardados, assim como as faturas de contas pagas. 

Esses blocos dispostos no seguimento das paredes para que não estejam abrindo suas portas pelo caminho. No meu guarda roupas há roupas que não uso e que existem como os documentos e as faturas. Estão lá dando dignidade aos cabides. Aquele outro taco da sala e este outro do quarto também não uso, mas estão aqui e lá a compor a sequência do chão. Se os arrancar, provavelmente não farão falta alguma, somente deixarão banguelos estes espaços, umas faltas. Gosto de imaginar um chão banguelo assim como descobrir o azulejo invertido na parede do banheiro. É uma desobediência. Quero desobedecer a mesa e seu vaso, desobedecer as portas dos armários para encontrar dentro a palavra secreta, as muitas palavras guardadas. Devem estar lá, no meio das coisas inúteis enfileiradas de maneira caótica que denomino nada. Existir deve ter dessas coisas, uma lida constante com tantas faltas, um tanto demais. 

Me esqueço fácil das coisas, nem me lembro da mala lá em cima e tampouco do quadro que pendurei na parede. Me esqueço por fome, sim, esquecer é como ter fome. Me esqueço todos os dias e meu estômago está novamente vazio, porém não me esqueço do sabor daquilo que experimentei, mesmo que não o sinta no paladar. O que fica é sensação e sensação é quase um esquecimento. Se fecho as portas do armário é porque num momento tenho a sensação de ter lembrado de algo. Quase um vício. Quando criança gostava de saber que cabia todo dentro do armário e me fechava lá dentro imaginando o lugar onde podia existir uma passagem secreta. Só de imaginar essa passagem, o lugar era imediatamente inventado. Deve ter sido lá que guardei algumas coisas.  

Vaso é quase um armário e o armário também recipiente. Vaso não se escreve com "z", pois bastaria um "i" para preenchê-lo de vazio. Vaso é uma palavra materializada no espaço, ou uma sensação. O espaço é o que comporta, só que sem porta, abrindo vaga para o trocadilho. Vazo, quando vazo, rompe com as paredes, quando vaza de mim esse "i". Deve ser ele parte da palavra que busco. Dentro dele, no mais, não há vogal. Dentro da palavra, nem consoantes. O "i" é o vaso que inventei agora, o armário de portas abertas. Armário deve ter nascido para guardar armas e, no entanto, tal como o espaço, contém a palavra "rio". Assim, toda palavra deve ter as suas passagens secretas. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Gravidade

     Decidiu grávida ter a filha no espaço. Não num espaço qualquer, mas onde estarão suspensas em lugar nenhum, onde nenhum ponto possa ser visto, nada a contemplar com os olhos. A única coisa que leva, além da filha, é um grão. Nua, se pôs em órbita ao redor de seu ventre cada vez mais agudo. Rompeu a placenta e o cordão umbilical segurou por um tempo uma criança vagando. Não fosse pelo que se sabe do corpo e do que as unia, não saberia identificar na escuridão onde a filha recém nascida poderia estar. Se tocaram pela primeira vez e a mãe ofereceu-lhe o seio. Seio breu, leite breu, fome breu. Durante anos as únicas coisas que pôde conhecer a criança eram os seios e o grão, os únicos pontos do universo, como se no negror do espaço houvesse duas ferpas soltas que não lhe ofereciam risco, uma que a embalava e se movia, outra que era um grão. Cresceu, aprendeu a vagar, as horas eram silenciosas, nenhuma palavra aprendeu, língua nenhuma. Tateando o corpo da mãe e o grão, explorava-os com todos os questionamentos mudos que possam existir, o negrume nada dizia e quanto mais crescia, maiores eram os terrenos do corpo e do grão. 

       Os olhos inúteis, de repente o negrume do espaço ganha três corpos que ele mesmo não pode ver ou sentir, que se movem, se movem, se arriscam em sonhos todos os tatos, amplificando a presença do grão. Não há dúvida do lugar quando não se sabe o que é um lugar. Ali, únicos, desentendem de espaço, é como se entre os corpos houvesse vagas que são também dos corpos, como se entre um dedo e outro este espaço fosse também parte da mão. É. De tanto que é o que se tem é todo corpo, e não se sabe se o que move são os corpos ou o que existe entre eles. Tudo move e tudo são vagas de um corpo só, então matéria. O grão chegou a ter para a menina as mais variadas dimensões, desde o maior dos astros até a ínfima partícula, aprendeu a não ter limites.   

       A mãe decide levá-la à terra. O que não se sabe, não se vê. A filha reporta pelo corpo sensações distintas, como o calor ao se aproximar do sol, porém seus olhos ainda são cegos. Que surpresa teve a menina ao tocar os pés na terra e sentir novas sensações como respirar pela primeira vez! Toda êxtase e euforia, viu o grão entrar na paisagem escura e sumir. A mãe o havia plantado. Ali ficaram por dias até que do grão nasceu a muda e a filha pôde ver da absoluta escuridão brotar uma cor que fez abrir a teus olhos o mundo que se revela ainda aos poucos através da cortina.  

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Clara

O que sei do mundo? E como saber? Há notas dentro que nascem de um instrumento estranho, desconhecido das palavras e que existe além de um porta retratos ao lado da máquina de escrever. O que me interessa é o que não existe entre eles, o espaço entre uma palavra e outra, quem sabe uma vírgula. Justamente aí me movo e aqui estou diante da fruta do tempo, uma romã, escrevendo. Primeiro tenho em mãos esta figura torta do não sei, o sentimento. Ele que me trás à tipografia arquitetura das letras o que sinto. Sei, a difícil palavra do saber, a lavoura do que não plantei e rego com todo corpo líquido este campo. São seus olhos que me dão o amarelo do trigo, a superfície do vento, a colheita e preparação do pão palavra e também o que existo nas faíscas que saem do trabalho martelo/aço/bigorna. Assim estou a ser seu pai. Eu, pai. O que sei do mundo? E como saber, minha filha? Somos os dois as pontas de teus dedos que respondem ao mundo suas experiências, somos tuas sedes. Talvez eu seja teus silêncios e somos os dois silêncios entre uma palavra e outra. O que sinto, essas notas, mora no que não sabemos um do outro. Amor deve ser isso, a paixão pelo que sabemos não saber e queremos continuar não sabendo. São tantos. Olhamos então dentro de nossos vazios, o espaço entre as nossas palavras, e nos encontramos, rimos, amamos. Como dar um fim a algo que não se sabe como começou? Se há um fim, que seja apenas um ponto ao final do escrito para que ele depois saia voando por esses espaços feito mosquito. Vou dizer escrito para que faça par ao mosquito. Escritos e mosquitos zumbem, só que um é pelas asas e o outro também.  

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Nata

Cobriu de brumas o espaço uma névoa, fumaça que torna amena a paisagem, deitando-se sobre a luz dos postes que se tornam veladas, embaçando as ruas ainda molhadas, seus reflexos tétricos e solitários. Abraça, com invisíveis braços, as inúmeras casas que bebem a véspera por goles de vigília. Silêncio onde repousa a antena indiferente ao nascimento de algo longínquo, tudo se molda nos pratos que logo mais sairão de seus lugares de reserva e espera. A casa úmida de mesas e cadeiras, se despe de tintas que se soltam como fina película sobre as cabeças dos convidados, transformando corredores em corredores, salas em salas, portas em frestas por onde se olha e vê anunciado um lugar que permanece imutável, distante, também sob o domínio desta massa lenta e sem ruídos da névoa. Tudo, ou quase tudo, interrompido pelo odor de algo que concretizará junto ao dia de amanhã uma paisagem distante na escura e brumosa rotina.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Debaixo da Mesa

Reúnem-se os adultos ocupando estrategicamente os espaços das poltronas, observando nos intervalos as crianças que ouvem da tia histórias em torno da árvore de natal. Umas mais afoitas, elegem os embrulhos maiores seus presentes, outras exploram os ornamentos dependurados sobre a árvore, todos sob o olhar da estrela inatingível que figura no topo da complexa árvore das ideias distribuídas, embaladas em papéis natalinos cuidadosamente reservados para o momento de agora. Meninos e meninas maiores se separam pelos quartos, já não se iludem com a roupa sempre limpa de um velho que desce pela chaminé.
A sala, mesa posta, duas senhoras conversam alisando com as mãos o delicado forro.
O aroma que vem do forno invade a casa feito enxame de abelhas a ferroar o olfato, fazendo nascer da substância do ferrão uma imagem que fora incansavelmente propagada nos comerciais televisivos: a família reunida aprovando a ave dourada sobre a mesa, como o astro no topo do pinheiro de plástico. Revela a intimidade suspensa em vapores sublimes, esboço volátil de uma felicidade inventada.
A mãe, que ficara todo o tempo na cozinha junto à empregada que é também da família, a parte que come só num banquinho próximo à pia, - não se mistura além dos resquícios dos temperos impregnados nas intimidades dos dedos, dando às massas a pessoalidade do sabor - se apresenta de avental na sala anunciando ter esquecido um tempero do prato principal.
Silêncio.
Todos a olham como se vissem o próprio Bismarck entregue às trevas do naufrágio: o couraçado revelou-se frágil, o mar é maior que o mundo. Um primo anuncia o resgate: "Não tem problema, ficará bom do mesmo jeito!". Assim a família sobe ao bote compartilhando num espaço menor o receio de mergulhar na saliva grossa do oceano. Estreitos, a casa começa a desvendar suas rachaduras, uma mancha de mofo os observava todo o tempo, o taco, o taco, o taco, o fio solto do sofá, o vidro da mesa de centro com uma mancha vermelha, a luz queimada do pisca-pisca. 
Jantar servido, a ceia, todos escolhem cuidadosos seus lugares observando antes onde podem melhor se servir, alisam com pentes dourados os pelos das feras, um ritual, a mesa, as cadeiras, os pratos, os talheres são todos as costuras finas e ocultas dos mantos que lhes cobrem os corpos, que os fazem dignos de tal cerimônia. Comentários polidos como as taças, ruídos de colheres tropeçando nas porcelanas, o repouso do garfo fincado no arroz esperando que se contem os grãos dos cereais suspensos como estrelas no forro deste céu de vapor: a oração. 
O espaço da casa se rompe e é regido pelo hábito de uma fome que organiza sistematicamente a fatia da carne sobre os outros destroços, como a um presépio. As primeiras mastigadas tem seus ruídos particulares que se estendem noutras mais, uma orquestra intensa envolvida num caldo de silêncio grita seus instrumentos: "Ela esqueceu o tempero! Esqueceu o tempero! Esqueceu!"
O mesmo primo resolve dizer algo sobre o tempero e é recebido por todos com risos que deixam cair sobre a mesa uma delicadeza choca. E, assim, continuam mastigando outros esquecimentos.

Casa

Um peso. A casa continua morta nos móveis, nos guardados. Basta abrir uma porta do armário e fazer despertar os objetos dentro de caixas prontos para uma mudança futura. E quando será a mudança? Ela espera. Talvez abandoná-los ao gosto da chuva e das esquinas de sol obsessivo sobre as ramas que nascem das rachaduras de concreto. Ali deixá-los. Todos. A casa então vazia, completamente morta, agrupa em seus espaços vagos a própria essência, o lugar não lugar, a invalidez de suas prateleiras como a um deficiente - seja o que for a deficiência, talvez um olho que não capta mais o amarelo e tudo por ele é azulado mórbido, diluído. A casa uma letra oca que não encontra no vácuo qualquer suporte que a faça letra, existir, quem sabe uma palavra, (...). O que permanece vivo são as marcas na madeira, rios embalsamados, mares e praias, lagoas duras sob um vento constante. Toda vida ali deixada é a imagem sem querer ser dos tacos mal encerados. Agora leve, qualquer brisa faz agitar de seus móveis, - que não são mais que os furos alinhados nas paredes formando constelações de memórias - eiras.