Reúnem-se os adultos ocupando
estrategicamente os espaços das poltronas, observando nos intervalos as
crianças que ouvem da tia histórias em torno da árvore de natal. Umas mais
afoitas, elegem os embrulhos maiores seus presentes, outras exploram os ornamentos
dependurados sobre a árvore, todos sob o olhar da estrela inatingível que
figura no topo da complexa árvore das ideias distribuídas, embaladas em papéis
natalinos cuidadosamente reservados para o momento de agora. Meninos e meninas
maiores se separam pelos quartos, já não se iludem com a roupa sempre limpa de
um velho que desce pela chaminé.
A sala, mesa posta, duas senhoras
conversam alisando com as mãos o delicado forro.
O aroma que vem do forno invade a casa
feito enxame de abelhas a ferroar o olfato, fazendo nascer da substância do
ferrão uma imagem que fora incansavelmente propagada nos comerciais
televisivos: a família reunida aprovando a ave dourada sobre a mesa, como o
astro no topo do pinheiro de plástico. Revela a intimidade suspensa em vapores
sublimes, esboço volátil de uma felicidade inventada.
A mãe, que ficara todo o tempo na cozinha
junto à empregada que é também da família, a parte que come só num banquinho
próximo à pia, - não se mistura além dos resquícios dos temperos impregnados
nas intimidades dos dedos, dando às massas a pessoalidade do sabor - se
apresenta de avental na sala anunciando ter esquecido um tempero do prato
principal.
Silêncio.
Todos a olham como se vissem o próprio Bismarck entregue às trevas do naufrágio: o
couraçado revelou-se frágil, o mar é maior que o mundo. Um primo anuncia o resgate: "Não tem
problema, ficará bom do mesmo jeito!". Assim a família sobe ao bote
compartilhando num espaço menor o receio de mergulhar na saliva grossa do
oceano. Estreitos, a casa começa a desvendar suas rachaduras, uma mancha de
mofo os observava todo o tempo, o taco, o taco, o taco, o fio solto do sofá, o
vidro da mesa de centro com uma mancha vermelha, a luz queimada do
pisca-pisca.
Jantar servido, a ceia, todos escolhem
cuidadosos seus lugares observando antes onde podem melhor se servir, alisam
com pentes dourados os pelos das feras, um ritual, a mesa, as cadeiras, os
pratos, os talheres são todos as costuras finas e ocultas dos mantos que lhes
cobrem os corpos, que os fazem dignos de tal cerimônia. Comentários polidos
como as taças, ruídos de colheres tropeçando nas porcelanas, o repouso do garfo
fincado no arroz esperando que se contem os grãos dos cereais suspensos como
estrelas no forro deste céu de vapor: a oração.
O espaço da casa se rompe e é regido pelo
hábito de uma fome que organiza sistematicamente a fatia da carne sobre os
outros destroços, como a um presépio. As primeiras mastigadas tem seus ruídos
particulares que se estendem noutras mais, uma orquestra intensa envolvida num
caldo de silêncio grita seus instrumentos: "Ela esqueceu o tempero!
Esqueceu o tempero! Esqueceu!"
O mesmo primo resolve dizer algo sobre o
tempero e é recebido por todos com risos que deixam cair sobre a mesa uma
delicadeza choca. E, assim, continuam mastigando outros esquecimentos.
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