sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Debaixo da Mesa

Reúnem-se os adultos ocupando estrategicamente os espaços das poltronas, observando nos intervalos as crianças que ouvem da tia histórias em torno da árvore de natal. Umas mais afoitas, elegem os embrulhos maiores seus presentes, outras exploram os ornamentos dependurados sobre a árvore, todos sob o olhar da estrela inatingível que figura no topo da complexa árvore das ideias distribuídas, embaladas em papéis natalinos cuidadosamente reservados para o momento de agora. Meninos e meninas maiores se separam pelos quartos, já não se iludem com a roupa sempre limpa de um velho que desce pela chaminé.
A sala, mesa posta, duas senhoras conversam alisando com as mãos o delicado forro.
O aroma que vem do forno invade a casa feito enxame de abelhas a ferroar o olfato, fazendo nascer da substância do ferrão uma imagem que fora incansavelmente propagada nos comerciais televisivos: a família reunida aprovando a ave dourada sobre a mesa, como o astro no topo do pinheiro de plástico. Revela a intimidade suspensa em vapores sublimes, esboço volátil de uma felicidade inventada.
A mãe, que ficara todo o tempo na cozinha junto à empregada que é também da família, a parte que come só num banquinho próximo à pia, - não se mistura além dos resquícios dos temperos impregnados nas intimidades dos dedos, dando às massas a pessoalidade do sabor - se apresenta de avental na sala anunciando ter esquecido um tempero do prato principal.
Silêncio.
Todos a olham como se vissem o próprio Bismarck entregue às trevas do naufrágio: o couraçado revelou-se frágil, o mar é maior que o mundo. Um primo anuncia o resgate: "Não tem problema, ficará bom do mesmo jeito!". Assim a família sobe ao bote compartilhando num espaço menor o receio de mergulhar na saliva grossa do oceano. Estreitos, a casa começa a desvendar suas rachaduras, uma mancha de mofo os observava todo o tempo, o taco, o taco, o taco, o fio solto do sofá, o vidro da mesa de centro com uma mancha vermelha, a luz queimada do pisca-pisca. 
Jantar servido, a ceia, todos escolhem cuidadosos seus lugares observando antes onde podem melhor se servir, alisam com pentes dourados os pelos das feras, um ritual, a mesa, as cadeiras, os pratos, os talheres são todos as costuras finas e ocultas dos mantos que lhes cobrem os corpos, que os fazem dignos de tal cerimônia. Comentários polidos como as taças, ruídos de colheres tropeçando nas porcelanas, o repouso do garfo fincado no arroz esperando que se contem os grãos dos cereais suspensos como estrelas no forro deste céu de vapor: a oração. 
O espaço da casa se rompe e é regido pelo hábito de uma fome que organiza sistematicamente a fatia da carne sobre os outros destroços, como a um presépio. As primeiras mastigadas tem seus ruídos particulares que se estendem noutras mais, uma orquestra intensa envolvida num caldo de silêncio grita seus instrumentos: "Ela esqueceu o tempero! Esqueceu o tempero! Esqueceu!"
O mesmo primo resolve dizer algo sobre o tempero e é recebido por todos com risos que deixam cair sobre a mesa uma delicadeza choca. E, assim, continuam mastigando outros esquecimentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário