terça-feira, 23 de abril de 2013

A Fossa e o Guarda Roupas


          Nem as seculares máquinas do conforto, divulgadas, vendidas e possivelmente empregadas para alívio do trabalho feminino, iriam fazer dela uma mulher moderna. O fogão a gás no meio da cozinha, presente de casamento do pai, misturava o cheiro do novo com uma sensação de rebaixamento. O fogão à lenha não fora desativado e esperava por ela. As faíscas de madeira que crepitavam por efeito da palha ardente em suas mãos davam sentido e dignidade à pele grossa das palmas. As chamas do outro fogão, de origem desconhecida, ela não sabia usar. E o aparelho sem uso abrasava a cólera do marido.
O mar azul de metileno com uma lua flutuante era uma gravura que saíra de uma remota sala de jantar para adquirir o verniz dos óleos da cozinha. O pequeno quadro, um suvenir vindo da infância, a distraía da cozinha. A janela que soprava do quintal o piado martelado das crias impertinentes também a transportava para fora dali. Mas nada competia com o poder olfativo das réstias de alho que sempre direcionavam seu olhar para o que mais interessava, as panelas limpas, dependuradas, as colheres de pau que esculpira, as gamelas disposta por tamanho. O sentido de ordem que herdara da mãe imperava na sua cozinha. E com a ordem vinha a paz, sempre rompida pelo berro do marido, que agora exigia a comida.
Vivia em silêncio. Apresava-se para demorar pouco quando ia à venda comprar as necessidades da casa. De hábitos estranhos, sempre que varria o terreiro recolhia pequenos insetos, animais mortos e guardava-os no bolso do avental. O terreiro grande, sempre limpo, trazia um momento de paz no desfecho da tarde, quando ela sentava-se ao pé da mangueira e ficava a olhar o nada de significados distantes. Uma mulher sem o tempero de uma essência destinada aos homens, facilmente confundida com os torrões de terra arada num campo infértil, como se não existisse e fosse uma extensão daquilo que vivia, casa, paredes e ruínas, janelas apagadas para um espaço de ninguém.
Sofria constantemente agressões do marido que sempre se embriagava e a cada dia criava novas formas de agredir. Humilhações guardadas, caladas, sabidas pelos visinhos e por toda pequena cidade. Os olhos reservavam sonhos no lugar de lágrimas, o corpo queria um espaço que não fosse de dor.
Agora, servia o marido que escorava o rosto nos braços sobre a mesa, gesto típico de quando está embriagado, o almoço tarde, requentado. Com dificuldades, o marido consegue provar a primeira garfada e logo se aborrece, arremessando o prato para fora da mesa e, em seguida, cambaleando, jogando toda a comida pela janela da cozinha, ainda que as panelas lhe queimassem as mãos. O alvoroço tempestuoso do marido fez com que a mulher se retirasse e se metesse num canto qualquer, onde só ela sabia quais eram os valores de seus pensamentos. No momento, as crias disputavam a comida espalhada no quintal.  
Noutro dia, acordou surda. Assustada, derramava pavor nos olhos, as mãos tentando agarrar o que os dedos negavam no espaço, andou pela casa tateando as paredes, como cega, tropeçando nas pequenas crias que esperavam dela todas as migalhas matutinas. Agachou-se num canto da cozinha e pôs-se a chorar um choro miúdo, com as mãos cerradas a segurar o rosto. Olhava para as coisas, um olhar pedindo um ruído que fosse. Nem mesmo as galinhas compunham mais seus ritmos estúpidos e ensaiados. Era silêncio e o marido dormia. Uma hora ia acordar e reclamar o café amargo como ele. Sairia depois e reclamaria ao dono da venda a primeira dose de cachaça do dia.
Nos dias tranqüilos, o marido, depois de almoçar com sofreguidão, senta-se sob a mangueira e descasca o fumo que enrola caprichosamente na palha. Nestas horas a mulher lhe observa de longe e se lembra de outros tempos quando sua mãe se sentava ao lado do pai para as conversas mansas e sem tempo, enquanto ele preparava o cigarro. Sentia vontade de se sentar ao lado do marido.
Venta no quintal. Os bichos empoleirados aguardam temerosos a tempestade anunciada. O portão abre e fecha num ritmo delirante. Clarões de raios distantes. Uma tempestade surda parece oferecer mais perigo e a mulher teima em acender uma vela que não lhe oferece chama. Sua pequena gravura despenca na cozinha e espedaça o vidro da moldura, deixando que o papel de mar e lua voasse e tomasse o espaço da tempestade que agora não deixa sequer o sossego de plagas idealizadas em mundos distantes. Ela vê como um sonho se desfazer no despertar, o seu mar ser agora uma pequena gota de nada numa tormenta que arrasta. Toda uma tempestade surda.
Junto com a tempestade, o marido. Molhado e desfeito. Vendo a mulher de costas, berra como os trovões. Ela segurava um terço e pousava de frente a uma imagem de Nossa Senhora. Bate à mesa, joga vasilhas no chão e nada desperta a mulher que sente, em seguida, o peso de uma mão arrancando-a do lugar. Sofre inúmeras agressões até cansar o marido.
No dia seguinte, sol. O terreiro desajustado, telhas quebradas, parte do galinheiro despencado.
Silêncio.
Varrendo o terreiro com o mesmo hábito, encontra e guarda suas criaturas mortas no bolso do avental.
No guarda-roupa de duas portas onde o vestido amarelado do casamento se sobressai entre os outros maltrapilhos, guarda em uma caixa todos os animais que recolhe. Um dia isso veio a cheirar mal e o marido reclamou, incomodou-se. Recolheu algumas ferramentas e começou a cavar nova fossa, acreditando ser a velha feder tanto.
            Passa um dia sem beber, apenas cavando, subindo e descendo a escada com baldes cheios de terra. Ao principio da tarde, quando a fossa já estava bem funda, a mulher misteriosa recolhe da tuia um galão de gasolina que o marido usa para a serra elétrica. Aproxima-se da fossa, retira de forma abrupta a escada, e, surdamente, despeja o líquido sobre o marido que se desespera e tenta subir pelas paredes de terra já molhadas pela gasolina. Risca o primeiro fósforo que se apaga antes de chegar ao fundo onde o marido escorrega pelas paredes encharcadas. O segundo fósforo também não chega e a mulher se assusta ao ver o marido se aproximar. Derrama o resto da gasolina, num ato de desespero, e acende o terceiro fósforo num pedaço de papel. O clarão se fez naquela hora onde a tarde finda. Nenhum rastro de tempestade, todas as crias se sustentando em suas dignidades de criaturas quase surdas.

Um comentário:

  1. Lembrei do transbordar. É como se ela transbordasse daquilo que vivia, casa, paredes e ruínas, janelas apagadas para um espaço de ninguém.
    Lindo isso vei.

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