Todas as portas do armário fechadas. Me canso de olhar pra elas. Basta um vento para abrir as que não possuem chaves e me irritar, elas devem ficar fechadas assim como o chão limpo e a mesa organizada com um vaso no centro. Saio de onde estou, normalmente em repouso, e fecho as portas. Não há nada dentro, talvez seja isso que não quero ver, ver que não há nada. Posso colocar ali dentro tudo aquilo que não quero ver e que vejo diariamente quando ocupo com os olhos os outros cômodos da casa. Guardar pra não ser visto, assim como a mala que guarda coisas que nunca precisarei usar no dia a dia e se um dia a abro e penso desfazer de tudo aquilo, me rendo ao barato de deixar ali pra nada. Os documentos também estão guardados, assim como as faturas de contas pagas.
Esses blocos dispostos no seguimento das paredes para que não estejam abrindo suas portas pelo caminho. No meu guarda roupas há roupas que não uso e que existem como os documentos e as faturas. Estão lá dando dignidade aos cabides. Aquele outro taco da sala e este outro do quarto também não uso, mas estão aqui e lá a compor a sequência do chão. Se os arrancar, provavelmente não farão falta alguma, somente deixarão banguelos estes espaços, umas faltas. Gosto de imaginar um chão banguelo assim como descobrir o azulejo invertido na parede do banheiro. É uma desobediência. Quero desobedecer a mesa e seu vaso, desobedecer as portas dos armários para encontrar dentro a palavra secreta, as muitas palavras guardadas. Devem estar lá, no meio das coisas inúteis enfileiradas de maneira caótica que denomino nada. Existir deve ter dessas coisas, uma lida constante com tantas faltas, um tanto demais.
Me esqueço fácil das coisas, nem me lembro da mala lá em cima e tampouco do quadro que pendurei na parede. Me esqueço por fome, sim, esquecer é como ter fome. Me esqueço todos os dias e meu estômago está novamente vazio, porém não me esqueço do sabor daquilo que experimentei, mesmo que não o sinta no paladar. O que fica é sensação e sensação é quase um esquecimento. Se fecho as portas do armário é porque num momento tenho a sensação de ter lembrado de algo. Quase um vício. Quando criança gostava de saber que cabia todo dentro do armário e me fechava lá dentro imaginando o lugar onde podia existir uma passagem secreta. Só de imaginar essa passagem, o lugar era imediatamente inventado. Deve ter sido lá que guardei algumas coisas.
Vaso é quase um armário e o armário também recipiente. Vaso não se escreve com "z", pois bastaria um "i" para preenchê-lo de vazio. Vaso é uma palavra materializada no espaço, ou uma sensação. O espaço é o que comporta, só que sem porta, abrindo vaga para o trocadilho. Vazo, quando vazo, rompe com as paredes, quando vaza de mim esse "i". Deve ser ele parte da palavra que busco. Dentro dele, no mais, não há vogal. Dentro da palavra, nem consoantes. O "i" é o vaso que inventei agora, o armário de portas abertas. Armário deve ter nascido para guardar armas e, no entanto, tal como o espaço, contém a palavra "rio". Assim, toda palavra deve ter as suas passagens secretas.