domingo, 28 de abril de 2013

Os Patos, as Ondas e o Infinito

Um exemplo de infinito pode ser observado numa lagoa onde um ou mais patos nadam. O ideal é que um pato esteja nadando isolado do bando. O vértice criado por ele, o ângulo que forma a abertura, as ondas que se abrem por detrás do pato, se pensarmos o universo como um único lago, esta abertura de onda criada não teria onde terminar, continuaria se abrindo infinitamente. Com isso, um único pato neste lago seria capaz de, por um único ponto, percorrer todos os outros pontos do universo de forma interminável, através de ondas, do seu comportamento, do seu movimento. Esta abertura não seria apenas observada na superfície, mas também resultado de outras dimensões, camadas, uma delas é o que move o pato, suas necessidades e vontades, num outro campo. O que pode vir a fazer o pato se mover é tão misterioso quanto as ondas para um observador que está numa distância em que não se pode ver ou saber da existência do pato. Para este observador alcançar o entendimento da onda, teria que se dirigir à fonte, onde está o pato. Dependendo da velocidade ele nunca o alcançará ou então demorará muito ou pouco para alcançar, pois neste exemplo o pato é imortal e está sempre se movendo. Alcançando, encontrará, então, a “origem” das ondas e, da mesma forma que o pato, já que está numa lagoa infinita, produzirá outras ondas que poderão ser vistas por outro observador além. Ao pato, agora real, não se pode afirmar que ele tenha conhecimento das ondas que produz, apenas que “sabe” como produzi-las. O que se pode dizer de ambos (patos e ondas) é insuficiente se nos conformarmos com a palavra que os denominam, “patos” e “ondas”. Buscar entendê-los é caminhar sentido à fonte e neste percurso podemos nos confundir com outras ondas produzidas por outros patos, outros observadores ou por nós mesmos. Buscar as fontes é percorrer um caminho inesgotável, talvez inalcançável. O princípio nos foge, como nos foge o entendimento do próprio universo, o que continha antes, o “nada” e também a compreensão do “tudo”. Supor que estamos em contato todo o tempo com o princípio, o que havia antes dele, bem diante de nós, é também produzir ondas como os patos. Imaginando a construção do entendimento do universo através da imagem de um lago e que todo comportamento gera ondas, nenhum comportamento pode ser semelhante a outro ou acontecer igual e ao mesmo tempo que outro, já que os resultados de ondas produzidos por eles nunca serão os mesmos. E também é possível pensar que todos os comportamentos são iguais e acontecem ao mesmo tempo de forma semelhante, seja o latido de um cão ou os dedos digitando este texto, já que todos eles ocupam o “mesmo espaço” e toda onda reproduzida por eles viajarão, de certa forma, pela mesma “matéria”. A “solidão”, neste caso, existe apenas num conceito, é impossível de existir já que não existe nenhum fato acontecendo de forma totalmente isolada. Até mesmo a minúscula partícula que forma uma matéria estática e “inanimada” está sujeita a transformações e tem sua parcela no movimento das ondas, uma vez que a água do lago nunca estará completamente parada. Se pensarmos num espelho que existe no final de tudo, margeando toda a extensão do lago, ao lado e acima, veremos então literalmente o reflexo de nossas questões acerca da vida, a principal delas, “quem somos nós?”. Somos o que está dentro ou fora? As ondas que batem no espelho e voltam são as mesmas para dentro e para fora dele? O que está acima e abaixo deste lago é o campo de submersões avessas, idênticas, que podem ser comparados a um pêndulo de relógio onde a cada variação no espaço cria a ilusão do movimento, já que o pêndulo está em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Esta ilusão se constrói como uma espiral, lançando novamente uma outra onda para um novo campo infinito. A ilusão gerada pelo pêndulo, no caso das dimensões do lago, é o que dá vazão aos pensamentos, onde estamos produzindo ondas neste campo que se confunde com o real e que o real não se pode avaliar ou afirmar já que é todos os lagos e ondas numa matéria só. Desta maneira, qualquer movimento, comportamento, é reflexo do que vem a ser o universo, o que nos abarca, já que ele é um desdobramento em si mesmo, simetricamente, onde reina o princípio das possibilidades.

Formigas



Descobriu tarde que as formigas começaram a invadir o quarto e já tinham deixado no canto da parede um monte de terra vermelha ao lado onde estava a estante de livros, fizeram um formigueiro. 
A sala empoeirada, precisava preparar a casa para os convidados, alguns poucos amigos que viriam comemorar seu aniversário. Lembrou no que havia pensado no dia anterior, gostaria ser carteira por uns dias, bobagens, só para entregar cartas, aquelas encomendas tão esperadas. Tomou café, já era tarde para ela e para as formigas, com uma pá tratou de tirar os novos hóspedes ou a terra deixada por eles. Tapou o buraco com um pedaço de fita crepe, que procurem outro lugar longe dali do quarto.
Não havia dormido bem com a solidão amassando o travesseiro ao lado. Tentou, leu alguns textos, começou o mesmo filme chato da semana passada que não conseguiu sair do primeiro diálogo, lento e nada acontece. Pensou em assistir a outro, mas aquela velha ideia de que só assiste a um novo quando terminar o que está vendo... Não pode ceder a nada, tudo tem que andar com os mesmos passos, senão tropeça e cai. A solidão faz cara feia pra ela nos porta retratos da sala. Arriscou uma música baixa, um café já morno e um cigarro na varanda. Tudo certo quando não se tem nada pra pensar, o que não era o caso. Luzes por todos os lados, vidas que completam a experiência do tempo, sempre as mesmas. Nenhum telefonema na madrugada, já que passou da meia noite e sustentava os trinta anos, seu primeiro hóspede a dividir mais um ano aqueles lençóis cuidadosamente lavados e esticados, oferecendo à cama um aspecto de novo, de recomeço. Quando adolescente, um namorado queria ser o primeiro a lhe dar os parabéns, ligava no primeiro minuto do dia de seu aniversário. Lembranças... Não pode ficar nelas, é preciso ter a casa limpa para as 20hs.
Lá fora as plantas crescem o verde sobre o jardim, agora é que as formigas vieram escolher outro canto fora do mundo lá de fora. Por quê? Nada, nem precisa tentar entender. Basta existir para estes acontecimentos, todos molhados de não entendimentos. A solidão presa não se sabe onde a corroer aos poucos este invólucro de metal. Outro já morto olha do retrato, pede para que não demore. A cera grossa no relógio da sala lustra a madeira e deixa mais solto o tic tac das horas, do pensamento, do vento, das formigas, do jardim, das muitas verdades que tictacteiam por aí sem querer ser vistas ou mesmo revistas. Cansa-se.
Os convidados chegaram quase juntos com o ponteiro das 20hs, tudo pronto. Boas conversas, todas lustradas e treinadas por natos domadores de leões. Nada que não saísse do mesmo saco das coisas de sempre, mas um pouco mais esvaziado e prestes a revelar o que guarda no que ninguém pode ver, saber. Ainda que os gestos estejam sempre acusando uma esquina que oculta o outro lado, aquele em que se pega um ônibus para outro lugar, destino inventado.
Satisfeita pela presença dos amigos, sentiu-se ainda mais só lembrando-se dos travesseiros que esperam por ela marcados pelas noites de insônia. Tentou achar num rosto amigo um companheiro para vida toda, mas todos eles se pareciam com as mesmas fotos antigas da sala de visita. Um olhar meio sóbrio de um amigo deixou escapar o que pra ela fora diagnosticado como “ajuda-me, você me entende”. Não tinha sido bombeiro ou policial para ajudar alguém, era apenas ela, profissão sozinha.
Fim de noite, ou fim de festa, pois a noite ainda continuava sem horas, senhora de si. Despede de cada um com um beijo e agradecimentos. Aquele que queria ser salvo, a olhou por mais tempo a implorar que ficasse. Não, a porta já aberta esperava sugar a visita para o mundo de fora.
Assim como todas as festas, o que sobra é sempre uma conversa que não fora realizada, uma palavra mal dita, uma discreta vontade que é sempre enxaguada pelo álcool, o resto das palavras a gritar alto dentro dos copos, talheres e manchas pela mesa e pelo chão. Tudo isso fora visto por ela ainda encostada à porta pensando para amanhã limpar aquilo. Ainda conversam na sala, riem, bebem, não sabem respeitar a solidão da casa. O corpo sofre.
Evitando olhar-se no espelho, para não ver o que podem ter visto os amigos, entra na velha banheira e demora com um cigarro na mão. Caso fosse. Fosse... caso... Adormeceu.
Milhares de formigas apareceram na forma humana, com a face arredondada. Tomou seu corpo na banheira, levou-a para a cama. A cada toque, picadas lhe davam pequenos choques por todo o corpo. As mãos formigas a correr pela pele, pernas, braços, pescoço, seios. Cada poro, cada choque. Num instante, seu corpo fora tomado por formigas a picar de dentro. A cama eram dois corpos onde do outro podia se ver apenas um pedaço de pele envolvido pela outra névoa que se espalhava.
No dia seguinte, enquanto tomava o café da manhã, lembrou-se de que precisava retirar a fita crepe do buraco das formigas.

terça-feira, 23 de abril de 2013

A Fossa e o Guarda Roupas


          Nem as seculares máquinas do conforto, divulgadas, vendidas e possivelmente empregadas para alívio do trabalho feminino, iriam fazer dela uma mulher moderna. O fogão a gás no meio da cozinha, presente de casamento do pai, misturava o cheiro do novo com uma sensação de rebaixamento. O fogão à lenha não fora desativado e esperava por ela. As faíscas de madeira que crepitavam por efeito da palha ardente em suas mãos davam sentido e dignidade à pele grossa das palmas. As chamas do outro fogão, de origem desconhecida, ela não sabia usar. E o aparelho sem uso abrasava a cólera do marido.
O mar azul de metileno com uma lua flutuante era uma gravura que saíra de uma remota sala de jantar para adquirir o verniz dos óleos da cozinha. O pequeno quadro, um suvenir vindo da infância, a distraía da cozinha. A janela que soprava do quintal o piado martelado das crias impertinentes também a transportava para fora dali. Mas nada competia com o poder olfativo das réstias de alho que sempre direcionavam seu olhar para o que mais interessava, as panelas limpas, dependuradas, as colheres de pau que esculpira, as gamelas disposta por tamanho. O sentido de ordem que herdara da mãe imperava na sua cozinha. E com a ordem vinha a paz, sempre rompida pelo berro do marido, que agora exigia a comida.
Vivia em silêncio. Apresava-se para demorar pouco quando ia à venda comprar as necessidades da casa. De hábitos estranhos, sempre que varria o terreiro recolhia pequenos insetos, animais mortos e guardava-os no bolso do avental. O terreiro grande, sempre limpo, trazia um momento de paz no desfecho da tarde, quando ela sentava-se ao pé da mangueira e ficava a olhar o nada de significados distantes. Uma mulher sem o tempero de uma essência destinada aos homens, facilmente confundida com os torrões de terra arada num campo infértil, como se não existisse e fosse uma extensão daquilo que vivia, casa, paredes e ruínas, janelas apagadas para um espaço de ninguém.
Sofria constantemente agressões do marido que sempre se embriagava e a cada dia criava novas formas de agredir. Humilhações guardadas, caladas, sabidas pelos visinhos e por toda pequena cidade. Os olhos reservavam sonhos no lugar de lágrimas, o corpo queria um espaço que não fosse de dor.
Agora, servia o marido que escorava o rosto nos braços sobre a mesa, gesto típico de quando está embriagado, o almoço tarde, requentado. Com dificuldades, o marido consegue provar a primeira garfada e logo se aborrece, arremessando o prato para fora da mesa e, em seguida, cambaleando, jogando toda a comida pela janela da cozinha, ainda que as panelas lhe queimassem as mãos. O alvoroço tempestuoso do marido fez com que a mulher se retirasse e se metesse num canto qualquer, onde só ela sabia quais eram os valores de seus pensamentos. No momento, as crias disputavam a comida espalhada no quintal.  
Noutro dia, acordou surda. Assustada, derramava pavor nos olhos, as mãos tentando agarrar o que os dedos negavam no espaço, andou pela casa tateando as paredes, como cega, tropeçando nas pequenas crias que esperavam dela todas as migalhas matutinas. Agachou-se num canto da cozinha e pôs-se a chorar um choro miúdo, com as mãos cerradas a segurar o rosto. Olhava para as coisas, um olhar pedindo um ruído que fosse. Nem mesmo as galinhas compunham mais seus ritmos estúpidos e ensaiados. Era silêncio e o marido dormia. Uma hora ia acordar e reclamar o café amargo como ele. Sairia depois e reclamaria ao dono da venda a primeira dose de cachaça do dia.
Nos dias tranqüilos, o marido, depois de almoçar com sofreguidão, senta-se sob a mangueira e descasca o fumo que enrola caprichosamente na palha. Nestas horas a mulher lhe observa de longe e se lembra de outros tempos quando sua mãe se sentava ao lado do pai para as conversas mansas e sem tempo, enquanto ele preparava o cigarro. Sentia vontade de se sentar ao lado do marido.
Venta no quintal. Os bichos empoleirados aguardam temerosos a tempestade anunciada. O portão abre e fecha num ritmo delirante. Clarões de raios distantes. Uma tempestade surda parece oferecer mais perigo e a mulher teima em acender uma vela que não lhe oferece chama. Sua pequena gravura despenca na cozinha e espedaça o vidro da moldura, deixando que o papel de mar e lua voasse e tomasse o espaço da tempestade que agora não deixa sequer o sossego de plagas idealizadas em mundos distantes. Ela vê como um sonho se desfazer no despertar, o seu mar ser agora uma pequena gota de nada numa tormenta que arrasta. Toda uma tempestade surda.
Junto com a tempestade, o marido. Molhado e desfeito. Vendo a mulher de costas, berra como os trovões. Ela segurava um terço e pousava de frente a uma imagem de Nossa Senhora. Bate à mesa, joga vasilhas no chão e nada desperta a mulher que sente, em seguida, o peso de uma mão arrancando-a do lugar. Sofre inúmeras agressões até cansar o marido.
No dia seguinte, sol. O terreiro desajustado, telhas quebradas, parte do galinheiro despencado.
Silêncio.
Varrendo o terreiro com o mesmo hábito, encontra e guarda suas criaturas mortas no bolso do avental.
No guarda-roupa de duas portas onde o vestido amarelado do casamento se sobressai entre os outros maltrapilhos, guarda em uma caixa todos os animais que recolhe. Um dia isso veio a cheirar mal e o marido reclamou, incomodou-se. Recolheu algumas ferramentas e começou a cavar nova fossa, acreditando ser a velha feder tanto.
            Passa um dia sem beber, apenas cavando, subindo e descendo a escada com baldes cheios de terra. Ao principio da tarde, quando a fossa já estava bem funda, a mulher misteriosa recolhe da tuia um galão de gasolina que o marido usa para a serra elétrica. Aproxima-se da fossa, retira de forma abrupta a escada, e, surdamente, despeja o líquido sobre o marido que se desespera e tenta subir pelas paredes de terra já molhadas pela gasolina. Risca o primeiro fósforo que se apaga antes de chegar ao fundo onde o marido escorrega pelas paredes encharcadas. O segundo fósforo também não chega e a mulher se assusta ao ver o marido se aproximar. Derrama o resto da gasolina, num ato de desespero, e acende o terceiro fósforo num pedaço de papel. O clarão se fez naquela hora onde a tarde finda. Nenhum rastro de tempestade, todas as crias se sustentando em suas dignidades de criaturas quase surdas.

sábado, 20 de abril de 2013

Em frente ao número 03


Tira a roupa negra da missa e tenta vestir mais uma vez o vestido de flores de sua mocidade, que já se desfaz nas bordas. Pega uma caixa de costura antiga que guarda no armário e tira de dentro a foto de um homem com seus 32 anos, cabelos bem penteados, terno, gravata e óculos fundo de garrafa. Aperta a foto contra os grandes seios, beija toda a foto já danificada com as marcas do batom. Vai até a escrivaninha, pega a agenda telefônica, na letra D, Diógenes. Disca e deixa chamar. Atende uma voz rouca. Desliga. Vai até a cozinha pegar um copo de água para tomar o remédio. Senta-se na cadeira e desaba, chora. As pernas apertadas pelo vestido apontam veias grossas e azuis. Se queixa de reumatismo e hipertensão. A casa onde vive é escura, de apenas quatro cômodos: cozinha pequena, sala apertada que cabe um sofá e uma estante para a televisão, um quarto e um banheiro. Nas paredes da casa, santos por todos os lados, taco mal encerado. Na estante da televisão, uma foto amarelada de quando criança e uma de seu falecido marido. Não teve filhos, nasceu com um problema no útero. Ao fim de cada choro, se cansa. Deita-se no sofá da sala já impregnado de seu cheiro, liga a televisão e coloca no canal onde um homem com uns óculos intelectuais fala sobre novelas e a vida de pessoas famosas. Adormece.
Já é noite. Acorda e percebe que dormira toda tarde. Vai até a cozinha, bebe um copo com água com mais um comprimido. Sente vertigem, quase desmaia e apóia-se à mesa. Coloca uma das mãos na cabeça e pensa estar sofrendo um novo ataque. Senta-se lentamente na cadeira e espera passar o mal estar, com a cabeça entre os braços apoiados na mesa. Passado, vai até a geladeira e constata que se esqueceu de comprar a carne para a sopa desta noite, come pão velho com queijo derretido na chapa. Já são quase onze da noite, não tem sono. Pega a bíblia e inicia a leitura pela enésima vez. O telefone toca. É o sobrinho de seu falecido marido dizendo que precisa passar um tempo na cidade para estudar, pede para ficar em sua casa por uns tempos, mesmo que tenha que dormir naquele sofá. Ela não o recusa e faz o mesmo discurso para falar se sua vida miserável, olhando para o sofá e pensando num lençol para forrá-lo. O sobrinho chegará ao próximo mês. Precisa arrumar a casa para uma boa impressão. Não consegue dormir bem o resto da noite. Acorda cedo e vai até o açougue comprar a carne da sopa. No açougue, escuta um boato de que o padre estaria tendo um caso com uma mulher. Lembra-se da calcinha deixada atrás do São João Batista. O açougueiro ao perceber sua presença, pede discretamente para que os outros mudem de assunto. Dois quilos de carne moída.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Ladrilhos

De tarde, despeço do tempo
peça de uma hora
na moldura de um quadro que ladra
ouvindo passos detrás de um portão sem tranca
há nessa casa quintal e sala fresca
que repousa uma... não posso ir lá.
o dia, esse agora, é antes do retorno
do amanhã que retorna, retorna.
Voltar é sem ser as luzes que despencam das vistas.
Mesmo assim, ainda que as, não posso contar.
Na rua, essas ruas, cômodas árvores e um azul lento
que provoca detrás dos fados carregados de mar
tão longe, como longe estão as horas dessa
desfigurada tarde já sem moldura, já
dentro me encontro, nessa fresca sala que não posso.
E daqui, sem ver, apenas palavras, tic-tac-teia
um polido ponteiro engrenado pelo pó das marcas
que tornam toda tarde eterna e toda volta inverso regresso
não sei se é volta ou aquilo.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Visita

Sono sonso
o que é além das cristas de um canto 
Descosturo o dia e das linhas faço um manto

despido desperto, pra perto do que me embala
cerro todo mudo, desfaço cristais da sala

embaço 
embaraço
envolvo  

tal vento 

invento
depois
desdigo

sono sonso
sabe
que sonharei
contigo


domingo, 14 de abril de 2013

Bandoneon

No mesmo céu sobrevoam helicóptero e urubus. Cinza, pesado, rabiscado de nuvens, por onde também um guindaste alaranjado desliza soberano e calmo, indiferente aos convidados que chegavam aos poucos, recebidos numa área separada onde a chuva não viria incomodar. É quase noite e o garçom já havia deixado transbordar o refrigerante no vestido de uma senhora de olhos verdes que todos evitavam. Todos se evitavam, na verdade, buscavam alguns grupos de conversas para não deixar evidente que nas festas de família há sempre um por detrás do formalismo que sustentam.
Aqui, caixas de papelão com livros, alguns pigmentos e um rádio desligado. A cama bagunçada do ontem, a tentativa de se encontrar perdido por um desejo que é carne e além do mais, os dedos desobedecendo e insistindo por um corpo que se despia devagar. Toques, bocas a encenar em delicada peça musical cuja trilha é um bandoneon dissolvendo os espaços do quarto, apagando, deixando a luz quente dos corpos. Seios por explorar, cada pinta. Detalhes de um lençol desde já. Pequenas partículas cristalizadas aos sulcos grossos de minúsculas rotas, jogadas em gotas pelo chão, chuva interna a sair dos poros.
Há muitos intervalos não ditos, outros não pensados, não vividos. Dizer que se vive o inteiro de uma vida é mentira.
No fim da noite, um samba bem perdido, uma embriaguez e uma luta de boxe. 
A cama, a mesma, guardada de cheiros que acordaram de um dia que novamente acaba.

terça-feira, 9 de abril de 2013



Hoje o que caminha é uma larva fria
despencando em casulos abertos
ao desembarque sereno do chão
sem um trincar nem ruído se ouve

Rasteja tua insignificância 
pelas frestas de um olhar de cão

Há também outras larvas
cobrindo um corpo vazio
Colar feito de oco
dentro de madrepérolas

Me empresta tua perna
manca que me apoio 
indo em busca
de uma coisa
que mete medo,
diz de onde vou

Tardo


Ensina-me as redes, pescador
Desejo a fisga que nada me empresta
Ensina-me o chão, olhar de terra
Descuido do que não pesco
E quedo nas frias vagas de teu leito
Um peixe que me olha vazio

Quando alta maré tu te pões a sonhar,
Ensina-me as redes que te deita
Quero os juncos retidos em teu peito
As colunas secas também as quero
Essas que sustentam varandas tardias
Onde tu te reclinas a cochichar no tempo

Ensina-me o que vê tuas crianças
Quando sais ao mar 
e delas, sobra o que não vê
Serei então sobras das tuas
redes que retornam
Ao olhar de quem te espera

o destino ser palavra diz de sina

dis
des
in
a

disdesina

uma não palavra inteira

domingo, 7 de abril de 2013

Céu

Olhe o céu. Olhe novamente e outras vezes mais até que ele esteja esgotado de ser céu.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Abril

Pequenas rãs na caixa d'água
tomando a boia como cais
provando a onda
Liturgia de poucas horas
e acalma, 

numa forma desencontrada

Nos vimos sob a copa de
uma esquina
de lá ou de cá
trombamos olhares
que se derramaram 
conforme a chuva

Te apresentei
tico-tico

te pude cem
o que eu tinha

Abril, essa rua 
de uma festa
que não pude ir

o vestido me apertava
senti náusea
ao passar pela barbearia
não pela navalha
Era Abril.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Antes é não saber.
Poema pra Annaline Curado