quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Enxurrada

A estrada é de terra, essa. 
Por cima dela, uma montanha. 

A montanha é de pedra 
e de terra e de raízes 
e pequenas árvores. 

O mês é janeiro 
e a chuva veio 
nos ventos 
dos meses passados. 

A chuva caiu sobre 
a montanha 
e sobre a casa 
e sobre a grama 
e o antigo galinheiro. 

A chuva não é de pedra, 
mas o telhado soou 
a cada gota o seu tamborim 
de cerâmica 
como se fossem as gotas 
dedos de pedra 
de um percussionista. 

O córrego foi desenhado pela água 
e se encheu de chuva, 
passou por cima do canto do galo, 
apagou da lama as pegadas da criação, 
varreu o terreiro, 
abafou o chiado da panela no fogão, 
gotejou na sala, 
no quarto, 
em cima da cama, 
abafou também as vozes 
de dentro da casa, 
o córrego transbordou 
junto com a fé, 
um terço corre feito enxurrada 
nas mãos da senhora 
que sopra sua oração. 

A chuva e a oração. 

A janela nada vê 
além da cortina branca 
encharcada. 

Nem pio, o mundo é uma pia. 

Escurece, como todos os dias, 
quando chove antes da noite. 
A noite, atrasada, apaga 
o mundo borrado 
e no sem vê só se escuta 
a sombra do copo de água benta 
que agita-se na parede 
iluminada pela vela. 

No prato, a colher persegue 
o grão cozido da panela muda 
e o metal nos lábios 
é mais frio que a chuva, 
ainda que tenha roubado 
da comida o calor fugaz. 
A brasa. 
O tição são os olhos do gato 
adormecendo. 
Abrasa a esperança 
que aquece a cama 
e daquilo que é silêncio 
se ama como correnteza, 
enxurrada, 
pra dentro dos lençóis. 

Amanhece 
e a estrada de terra 
agora tem suas veias expostas, 
por onde passou 
o que se derramou 

e foi embora.

Um comentário:

  1. Bebeto poeta de coração, de intenção, de escuta de olhos passeantes. Poesia que escorrega feito prosa mansa depois da chuva. Obrigada por compartilhar. Feliz, feliz 2018!!!

    ResponderExcluir