quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O estranho estranho

Há de haver brechas para que a vida se articule em alguma outra coisa, de alguma outra forma. Se não tudo poderia se passar em dor de garganta ou vizinhas por trás da janela. Para mim existe o estranho estranho.  E não é uma pessoa, nem um acontecimento, nem um objeto, nem uma sensação. É tudo isso misturado, junto, praticamente uma entidade sem rosto nem nome. Seria o vento? Digamos que não sei definir mas que ele existe, existe.
Acho que o estranho estranho veio dos tempos primórdios e brigou com outras entidades sem rosto e sem nome para estar hoje em dia aqui entre nós. Com certeza tinham outras entidades  que acompanham outros povos, nossos antepassados e que nem fazemos idéia do que elas eram capazes pois hoje elas não mais pairam por ai. Então não sabemos daquilo que não experienciamos.  Alguns acham que isso é ciência e está associado às teorias Darwinistas, outros sentem a espiritualidade,  tem aqueles que apenas se ligam à internet, sem juízo de valores,  podemos ser os três ao mesmo tempo. Não importa, que ele teve embate com outros seres para estar entre nós, ele teve, passou pela era glacial e as grandes navegações e cá se acomoda nos dias de domingo enquanto famílias assistem televisão.
Quase sem querer, quem nunca pegou um cigarro depois da bebida, de não mais saber o que fazer com as mãos num momento de espera ou porque todos estavam pegando e sei lá. Ou sabe num velório, você olha ao redor, as pessoas choram, não há muito o que ser dito, os olhares se tornam distantes em vários momentos. Simplesmente é nessa hora que está o estranho estranho. Ele está entre os objetos parados e sem função que se juntam na garagem das pessoas de um bairro da zona leste ou no meio de uma música de dez minutos, nos exatos cinco, onde você encontra-se osmótico. Talvez numa garfada de arroz e feijão que você pensa por que arroz e feijão é arroz e feijão e não batata com peixe. Quando um físico descobre a fórmula que queria descobrir a vida inteira e depois olha para todos os papéis, todo o quarto.

Se fosse para eu descrever o estranho estranho em um roupa seria uma capa preta de cavaleiro.  Se fosse para descrevê-lo numa acentuação seria reticências.  Uma palavra? Deixe-me ver, ornitolaringologista ou o nome de um autor do leste europeu,  não pelo significado mas porque acho que deveria ser um palavra complexa. Este momento de não reconhecer-se, de parada, em milésimos de segundos ou alguns anos. E lá fica o estranho estranho em gerações, acompanhando os pensamentos sobre se as pessoas são pessoas ou extraterrestres. Marco Polo vendo um esquimó e um esquimó vendo Marco Polo e ambos pensando: mas que porra é essa? Enfim, as coisas assim em brecha de poderem ser o que não eram antes.

Por Ana Landia

-das belezas de ler-

domingo, 15 de setembro de 2013

Ítaca

Se partires um dia rumo à Ítaca 
Faz votos de que o caminho seja longo 
repleto de aventuras, repleto de saber. 
Nem lestrigões, nem ciclopes, 
nem o colérico Posidon te intimidem! 
Eles no teu caminho jamais encontrarás 
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes 
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti. 
Faz votos de que o caminho seja longo. 
Numerosas serão as manhãs de verão 
Nas quais com que prazer, com que alegria 
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto 
Para correr as lojas dos fenícios 
e belas mercancias adquirir. 
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos 
E perfumes sensuais de toda espécie 
Quanto houver de aromas deleitosos. 
A muitas cidades do Egito peregrinas 
Para aprender, para aprender dos doutos. 
Tem todo o tempo ítaca na mente. 
Estás predestinado a ali chegar. 
Mas, não apresses a viagem nunca. 
Melhor muitos anos levares de jornada 
E fundeares na ilha velho enfim. 
Rico de quanto ganhaste no caminho 
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse. 
Uma bela viagem deu-te Ítaca. 
Sem ela não te ponhas a caminho. 
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. 
Ítaca não te iludiu 
Se a achas pobre. 
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência. 
E, agora, sabes o que significam Ítacas. 



Constantino Kabvafis (1863-1933) 
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

E se a pétala perder a flor?

O que te falam os monstros
ou os lobos dos quais me diz?
Para aquieta-los em teus mistérios
Há que servir-se de penas
nesta noite fria que tal
vento te descobre as veias.
Há que todos os dias
encher a vasilha de úmidas pétalas
que saem do gozo de uma fricção ruidosa.
Há que mover com óleos a fissura 
de tuas engrenagens, para que elas
não se tornem ásperas como cantam
certas aves.
Há que deixar palavras se soltarem
como os meninos em colado cerol
arrebenta o espaço que despenca
cromático sobre os fios.
Há que se perder na esquina
onde tua boca acende o poste.
E tais monstros, vampiros e lobos
são cascas ou caroços das frutas
roídas de tuas palavras.
Há poucas coisas mais belas
que o caroço.
Ele que não te serve,
descarta sobre a terra 

num campo de inúmeras feras
que te vestem a alma da fome

que tuas palavras tem.
Quando se sabe que não há o que dizer
para aliviar o uivo daquilo que é
a perna manca de teus passos,
palavras de esperanças
são sintéticas.
O que se come é a carne
marcada de patas
de um quadrúpede que te 

segue.
Como passear com cães
estupidamente educados.


domingo, 1 de setembro de 2013

Ou fato

Quase dezoito. E nem era pela idade, era tarde. Sabe aquele cheiro? Das coisas vividas que descem junto ao dia no longe? Era pra lá mesmo. Numa lonjura. E chegavam pessoas, umas de chinelos e mãos sujas, outras, mais tarde, de botas e casacos. O fogão aceso crepitava outro cheiro de pele, a fumaça que se sentia no banho aquecido pela serpentina, aquela parede escura onde andavam lagartixas atrás dos insetos menores. Já não se via mais rastro do dia, como narrar? Bom, era assim, anoitece, anoitecia. Cedo, bem cedo, ainda escuro, levantavam os filhos mais velhos pra tratar do gado e tirar o leite, da cama se ouvia o tratamento e levantava aquele cheiro de esterco e curral. Novamente o cheiro, esse de um biscoito doce junto ao café, acordava a gente pra se sentar à mesa dos trabalhos matutinos sendo realizados aos poucos. Depois era correr com o carro de boi até a plantação pra outros acertos. Sol a pino, enxada fazia aço na terra como um violoncelo. Almoço, aquele prato fundo e o copo de limonada com limão capeta. De tarde outros acertos e depois a pausa pra brincadeira, o futebol no gramado que ficava bem em frente a casa, a pescaria, o outro que fazia arapuca pra pegar passarinhos. Pegava e soltava, o bom era ver dar certo, sentir o coração do bicho apressado nas mãos pra saber mesmo que tudo ali passava mais lento, como se pegasse o tempo e dissesse que não, depois podia ele voar pra outras bandas, assentando suas penas em galhos de outras terras, em rincões de outras raças. Ver voar era pausar e ser o de sempre a repetir como o martelado canto da coruja pela noite. Já tanta coisa. Ali mesmo à beira do fogão, a senhora sabia. Perdeu o marido, os pais, e agora se diverte com os filhos falando em casamento e brincando de bola no gramado. Na lonjura leva o pássaro nas suas asas o peso dos dias e faz a curva. Nessa hora é que apareciam gente pra tomar a cachaça, falavam da plantação, da chuva que não veio e do poço que não achou gota d'água no fundão. A pele de porco servida e o baralho que ia até mais tarde, no meio de prosa, de cheiros, histórias. A mesa. A janela pequena. Os quartos. O porão. E lá fora só se vê barulho em camadas e nada além. Dá hora de dormir, abrir e fechar os olhos é o mesmo negrume. Martela a coruja e todo corpo, são ponteiros do tempo sussurrando do amanhã, do amanhã, do amanhã.