domingo, 25 de agosto de 2013

Grão

Voltei a cavar os quintais, dessa vez noutro interior, em busca de memórias. O primeiro, no sábado, fui à casa de Dona Maria do Gercy. Lá chegando, Soraya que mora agora sozinha na casa depois que sua mãe, Maria, faleceu, estava no quintal conversando com o Lobão, homem que faz os serviços da casa, capina, cuida do jardim e compra cigarro na venda pra ela que está com os joelhos machucados por causa de uma queda. Levei comigo a ração pro gato, pães e biscoitos que sua irmã, Suzete, me pediu que levasse sabendo que eu ia pra lá. Chamei e fui falar com ela na cozinha onde entreguei a encomenda. Sabendo do projeto e autorizada a escavação, me disse que abrira recente o cofre de seu pai que estava fechado há 36 anos. Lá funcionava há 100 anos uma "pharmácia" e um banco, bem antes da cidade se conhecer como cidade. No cofre foi encontrado latas antigas com vários frascos de drogas para manipulação, do tipo ópio, cocaína, morfina, e também uma lata com folhas de coca assim como cartas, notas promissórias e muitas fotos antigas da família. Pude ver tudo e registrar em fotos. Há uma foto que me impressionou: no primeiro plano estava Meire, linda, jovem; logo atrás, numa canoa tomada por ramas dentro de uma lagoa, Dona Maria do Gercy ainda jovem sorrindo para o fotógrafo, o momento era de descontração; ao fundo, na ponta da canoa, Domingos muito elegante segurando um revólver calibre 38 apontando para algo fora da cena, este que viria a ser o marido de Meire; e, ao centro e ao lado de Maria, Mita fitando algo nas mãos, cabisbaixa com um arco segurando os cabelos cheios, tristonha. Naquela foto, só saudades que um canto trás, Domingos, seu Domingos, Meire, Dona Meire da padaria, Maria, Dona Maria do Gercy, Mita, Dona Mita tão falada, tão ausente naquela foto onde a presença dos outros é um instante gravado no papel que passou anos amarelando dentro de um cofre e hoje circula as mãos das muitas saudades. Os olhos de quem os conhecera, parece que escutam as vozes, sorri esse contido que não se prolonga pelo resto da vida, pois junto há a lembrança de um fim, esse que cala e que torna os lábios trêmulos e longes a mesma canoa suspensa metida em ramas onde seus corpos foram vistos pela última vez. 
Assim que fiz os registros, fomos ao quintal. Soraya me levou a um pequeno barracão ao fundo onde havia livros com mais de um século, da farmácia do Gercy, e um caderno de poemas, da década de 50, com uma linda caligrafia que fomos descobrir ser de Suzete. 

No momento da escavação, parei para observar o entorno, a vegetação e as galinhas que levam cada uma nomes das primas de Soraya: Lêda, Bochecha, Parasita, que é a Ana Márcia, entre outras. Adriana teve que ser sacrificada porque estava comendo os próprios ovos. Um pintinho se perdeu do bando e piava seu desespero que era respondido pelo chamado da mãe, não sei qual das primas era. Era a vida na superfície e suas memórias naquele espaço carregado de outras lembranças. Suava, dia quente, um vento veio e parei pra senti-lo pensando na criação, noutras coisas tão divinas como o vento e me lembrei que para falar com Deus precisava ter voz de passarinho.

Quando terminei, fui à cozinha beber água e lá Suzete foleava seu caderno de poesias, pediu pra que eu me sentasse e recitou este poema de Cassimiro de Abreu:

Deus


Eu me lembro! Eu me lembro! - Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.


E eu disse a minha mãe nesse momento:
"Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?"

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E me respondeu: - Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,

Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.




Fiquei a imaginar este Deus maior que o tufão e o mar temido. E, não, pensei, ele é tão pequeno que cabe num canto de pássaro, de saudade, de lembrança, num grão.
Cada passo é um quintal diferente no guardado das lembranças e não há medida para a saudade que passeia atrás, como Deus nos vendo do distante. Ainda não consegui ter a voz de um passarinho. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Afã

Nesta grama, mais verde, passava um riacho de água que vinha da serra atrás, limpa de beber. Era forte aquela água, descia numa rapidez tão imediata. A gente mesmo ficava lá por um tempo vendo aquela pressa toda, diferente d'água do rio largo que corre noutra textura - parece - não fosse pela margem, corre parado junto da gente. Uma coisa assim, boba, dá quase pra pegar na mão, guardar no bolso da camisa, levar pra ver de noite quando já deitado na cama à luz de pouca luz, na madrugada escondido sozinho, metido naquele rio, como uma esfera mesmo, dessas prateadas que a gente olha até. Depois deixa ela, o sono, e dorme como se fosse a continuação daquelas águas, uma coisa essa quase, em sonho levado adiante. Esse riacho na pressa toda, não dava pra pegar, não, era só ver e aquilo dava na gente uma pressa também, pra chegar logo, atravessar, ir pra onde a gente tava indo, que era a lagoa larga. Naquele tempo eu não sabia, como não sei agora. E o que é que a gente sabe? Sei que deitei todo naquele riacho, deixando a pressão daquelas águas miúdas e fortes contornar minha cabeça e jorrar aquela urgência pro resto do corpo, fria, parece que fui benzendo. Era esse lugar mesmo, todo lá no fundo raso junto dos cabelos de mato numa direção só. Era a única maneira de dizer coisa que não dá pra moldar nas palavras. Foi assim, no impulso, e eu disse. E foi assim também que era outra hora a de ontem, porque passa, atravessa, prateia, desemboca súbito quando vê que no bolso a gente leva nada, rio num pega na mão, ele é dentro, já tá. A memória é olho que fica no longe, trazendo pra perto, rio correndo ao revés.
E nesse tempo já sem chuva... noutrora aquela serra volta a falar do seu riacho pra gente e a gente a falar nele as coisas.











sexta-feira, 2 de agosto de 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Muda


A Barca Acesa

Perdera as contas, próximo a nove ou doze vezes, que aquele cheiro perfumado (percebe-se o tom roxo com rastros esverdeados e azulados, como uma aurora, de onde vem, caso seja dum frasco ou duma flor) chegara até a barca. Mastros, velas, ondas, tábuas, toda uma escrita do espaço finca frouxa sem tinta um vão na garupa do tempo. Presa aos olhos, aquela barca, nessa hora perfumada, não existiria caso não fosse pelos cristais fugidios que acendem na água pequenos prismas como faíscas a confessar a luz de um astro. Tais pontos não poderiam ser capturados, eis a medida da loucura, se é ela o sem fim de um outro sem fim inteiriço e líquido que consome aos poucos a esperança de um lugar e resgata o corpo como âncora, aos sons ritmados de ondas como se fossem a voz de um grunhido vão, neste espaço da barca, fazendo-a existir e ser extensão das mãos agora se soltando frágeis ao sentido mais doce do olfato.