A Dança do Tempo
Estrada de terra, som dos pneus dos carros sobre o chão socado, pedras soltas pelo caminho, poeira, o "mata-burro" à esquerda, a galeria imponente dos eucaliptos que se repetem em longas fileiras onde corredores verticais formam linhas que vão do chão ao infinito, abrindo vagas para espadas de luzes afiadas que nos dilaceram sobre a tela ininterrupta e repetitiva da paisagem. Noutra curva, inclinam-se sobre a passagem as pequenas árvores da mata nativa, arbustos tortos emprestam aos pneus dos carros duas linhas paralelas quase apagadas que rabiscam um só destino neste recôndito trecho. Sob a tenda das árvores, uma lagoa muito parada acolhe o reflexo das copas que se erguem. Após o trecho pisoteado pelo gado, o terreno onde distintas espécies botânicas abraçam a casa do sítio. Uma casa de varandas largas e frescas, cujos arcos emolduram a estrada por onde veio o viajante que, enfim, se abriga. Junto à casa, um terraço aparado pelo cimento deixa à mostra a cozinha com um fogão a lenha e uma mesa desmedida. Lá, um homem vestido do trabalho, apenas o cimo da barba branca aparente no rosto moreno, com suas botas de borracha e chapéu moldado por uma personalidade absoluta, recebe as visitas com apertos de mãos logo que sua esposa, alegre e prazenteira, já as havia recebido com abraços e também apertos de mão secada no pano deitado sobre os ombros. A comida apita seus cheiros sobre a brasa do fogão, a mesa já oferece suas cadeiras que ali assistem às frutas recém-colhidas e à cachaça que se faz notar em primeiro lugar e aguarda a aprovação no estalar dos lábios.
Acomodam-se, são de casa todas as pessoas que chegam. Trazem suas bebidas, organizam-se ao redor da mesa e já predefinem este dia de encontros das histórias não contadas sobre aquelas sempre relembradas. O homem pede licença para tomar banho e volta de barba feita, cabelos bem penteados para trás e algumas mechas teimosas que lhe caem charmosas ao rosto e são de pronto ajeitadas com o zelo das mãos abertas e lentas. No centro da mesa, rodeado pelos presentes que o bajulam, o homem encontra o tempo. Ele então se junta aos demais. Toma sua cachaça, oferece uma dose a outro e o outro faz o mesmo a outro como numa teia sonora alinhada pelos galos. Sua esposa, fiel às receitas da família, animada com todos reunidos, sabe atender às expectativas daqueles que guardam na memória o sabor da última refeição ali compartilhada. A madeira sobre o ferro, a batida de colher sobre as panelas. O sol do meio dia, o cimento quase branco exige pressa a quem se arrisca a atravessa-lo. Logo, a sombra da casa descansa sobre o terraço cobrindo e apaziguando os objetos expostos e tornando o lugar fresco como água guardada em bilha de barro. Da cozinha se vê o pasto onde a mansidão das vacas dita o ritmo deste tempo que rumina paciente por cima do pano da grande mesa.
As conversas vão se assentando de acordo com as afinidades. Na sala da casa, tios e tias tecem outras conversas em toalhas barradas cujos intervalos são alargados em silêncio. Aqueles que continuam à grande mesa, revezam-se para abrir a geladeira em períodos cada vez mais curtos e buscar outras garrafas de cerveja. Fumaças assopradas para cima embaralham as vistas, dedos batendo sobre as cordas de um violão cujo repertório é sagrado. O dia faz a curva. A intermitente insistência das longas varas de eucalipto cederam ao corte da afiada falta.
Apoiados pela crescente manifestação anunciada desde que começaram a beber, as conversas passam a exigir outro espaço e dão lugar à dança. No terraço, iluminado apenas pela luz da cozinha e de uma das varandas que é, neste momento, a grande expectadora, a música soa exigente. Acontece ali uma comunhão. Todos se levantam e iniciam suas performances que, como as sementes aladas, sobrevoam amparadas pela incerteza de que vão tocar o chão, numa cumplicidade silenciosa. Na sala, uma das tias que está em tratamento de quimioterapia é resgatada no colo por seu filho e levada para aquele terraço em que todos flutuam. Ela dança de pano amarrado na cabeça, dança de braços abertos, de olhos fechados como se pedisse ao tempo: “Espera um pouco mais, não vá agora!”
O tempo que também voa incerto nas nossas certezas, é a performance da vida. Espantosamente, os grandes eucaliptos extintos pela falta de luz são denunciados pelos faróis dos carros que retornam.
Noutro dia, a mesma estrada, o chapéu escondendo os cabelos penteados, grisalhos, o pano apoiado no ombro, a brasa do fogão acesa, o gato deitado sobre a mureta, o cachorro que dorme sob um banco, a água irrigando a horta.
As cadeiras da varanda vazia assistem silenciosas a dança do tempo.