quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Lata de Sardinha

          Quando criança, acompanhava minha mãe em visitas que ela fazia às casas mais simples que conheci, de chão batido, para conversar com os sertanejos da região sobre assuntos demorados. Era como entrar no oculto de uma roda d’água. Ali, ouvi dizer sobre a feitura da farinha de mandioca e do fubá, das plantações de milho e feijão, coisas que faziam as minhas refeições serem cada vez menos estrangeiras ao mundo que eu conhecia. Ouvi dizer também, dos sertanejos, sobre a música dos carros de boi e aprendi que para o carro cantar melhor é preciso azeitar o eixo das rodas.
          Não conheci, de fato, o estrangeiro, todo ele me soa como os cantos ininterruptos dos carros de boi, zumbem aquele agudo surdo que me faz inventar imagens quase sensoriais como as de um cego. O estrangeiro é também o que não vivi e busco inventar em mim. Assim, uma parte clara e outra escura, uma parcela de verdade e outra de invenção, basta uma lata de sardinha para azeitar o eixo da memória e revisitar o pedaço de chão da minha infância, hoje quase estrangeira.
          Num local reservado da casa, onde chamávamos de barracão, havia dois fogões à lenha, menores, onde nossa avó passava horas fazendo doces ou tingindo panos com sua larga colher de pau em grandes tachos de cobre. Com o pano na cabeça e suor retido nas dobras do tempo, mexia. Lá também viveu e morreu Lolita, uma cadela pequena, a mais adorada de nossa avó, que silenciosamente abocanhava o calcanhar de estranhos.
          Doces de leite, goiabadas cascão, bananadas, doces de figo que a gente misturava ao creme de leite, sugestão dela, da avó, todos eles saiam do chão de cinzas e do ar escaldado do barracão. O doce de leite era cortado em losango que minha mãe teve de comer toda uma travessa dessas por ter desobedecido e pegado um antes da hora, quando criança. E, talvez por isso, evitava os losangos.
          Biscoitos e bolos também eram especialidades da avó. A massa presa aos dedos, as mãos que amassavam até o ponto certo e a aliança de casamento ao lado da tigela. Os biscoitos enrolados, cada um em suas formas, eram, depois de prontos, afundados no café para melhor saborear, como se saboreássemos também os espaços daquela cozinha com as telhas empretecidas da fumaça do fogão à lenha, quase sempre aceso. A avó, sentada à cabeceira da mesa, partia com as mãos pequenos pedaços de seus biscoitos e, em silêncio, provava-os enquanto filhos e netos se debruçavam sobre a mesa para bem compartilhar com as conversas o momento do café da tarde. Não havia outro mundo além deste diverso que o sabor permitia. Partir os biscoitos com as mãos, quase num ato religioso, ao invés de leva-los direto à boca, era como repartir e compartilhar na memória a lembrança de quem ela reservaria uma parcela daqueles biscoitos, a outra parcela ela dividia entre a gente e suas lembranças. 
         O quarto de costura ficava ao lado da despensa onde se assavam os biscoitos e bolos, separados apenas por uma parede. Como o teto não era forrado, nossa avó costurava enquanto media o cheiro que vinha do forno. Dias de bolo, todos sabiam: o cheiro lembrava-nos da sua casca fina e miolo macio, do quanto eram bons acompanhados do leite com café.
          Nesses dias de bolo, toda espera tinha uma ocupação, pedíamos a avó para manejar um pouco a batedeira que tremia em nossas mãos, causando descontrole e o risco de não ter o bolo no café da tarde. Ela assumia a batedeira e, já de fôrmas untadas, pedia para que procurássemos latas de sardinha pelo quintal, lugar que guardava todo tipo de sorte. Enquanto não tivéssemos cada um a sua lata, não cessávamos as buscas. Uma vez encontradas, ela as lavava bem, esterilizava com álcool e amassava com um martelo as pontas cortantes que sobravam. Untadas, derramava a mistura do bolo em cada uma além da que já se assentava na fôrma maior. Ver o bolo crescer nas latinhas através do vidro escuro do forno era como receber um presente adiantado junto à expectativa da véspera. Era como dar à nossa infância a própria infância, nos reconhecendo em nossas terras, retirando de nós a casca de estrangeiros de nós mesmos, onde sabíamos o lugar da criança que provaria o bolo nas latas de sardinha e do adulto que retiraria fatias da fôrma maior. Deste modo, cada neto com sua lata onde havia uma mistura doce do claro e do escuro - bolo de duas cores - experimentava, num exercício camuflado do tempo, a parte clara primeiro, deixando o escuro (de chocolate) para as ordens do depois, para o futuro que tínhamos dentro da pequena lata e que era saboreado sem grandes receios. 

terça-feira, 5 de março de 2019

Conversas


É possível sentir da terra os inúmeros ruídos, seus trovões internos que anunciam tempestades, o som das pontas ínfimas das raízes de uma planta que abrem espaços no maciço solo, se movimentando como tentáculos e produzindo deste movimento ranhuras sonoras que percorrem os vãos que são as casas ocupadas por corpos ancestrais responsáveis pela vida e pela morte. 

Um homem em solidão cuida da horta, mesmo que o vento esteja forte e a chuva é vista chegando, nada disso o atrapalha. É essa a imagem que vejo agora da janela da cozinha: um homem, ao longe, capinando canteiros de uma horta. Não há câmeras, ele não é um ator, não sabe que eu o vejo, é apenas seu corpo curvado com os movimentos dos braços levando e trazendo a enxada e o cansaço físico aparentemente menor do que a obrigação. Eu o conheço, é um sujeito de pouca fala, tímido. Ali, não se difere da vegetação, é como os movimentos das folhas das árvores, misturado à paisagem, ao vento, ao cheiro de terra molhada. Certamente ele tem os canais da escuta abertos neste momento. Se por algum instante ele se esvaziar, terá os seus vãos conectados com os da terra e facilitará o caminho das vozes desses corpos ancestrais que lhes trarão as sensações de uma escuta quase imperceptível.
Nada escutamos quando a escuta está bloqueada por outras tantas falas que existem no salão das coisas mundanas. O amor é também a escuta, sem julgamentos, sem resquícios do moral. Escutar a terra é tatear no escuro, não usar os olhos e não ter ouvidos. É escutar sendo surdo, ver sendo cego. A cegueira absoluta, o breu, atiça os sentidos da audição e todo som ganha forma e é possível ser visto em camadas como um corpo tridimensional. Assim também a surdez absoluta atiça os sentidos da visão, criando em todo o corpo canais de escuta que transformam toda vibração em fragmentos de outro corpo possível de ser visto. A cegueira e a surdez, ambos anulados, atiçam o olfato e o cheiro passa a representar a importante essência que nos conecta aos outros seres, sem que estes precisem ser vistos por nós. O tato existirá num lugar onde a sensação é um corpo que nos esbarra e é possível ser sentido. Tateamos este corpo, sentimos seus cheiros, escutamos suas vozes sem saber, pois o saber não é mais útil neste lugar. Ele é usado por nós quando nos reencontramos com as palavras. A razão é inútil, assim como todas as ciências. Adaptamo-nos a ver (ver é diferente de enxergar) com o recurso da razão e ela nos cega. Todo objeto para ser visto é preciso que haja luz (razão) e não o conseguimos ver se ele estiver iluminado por todos os seus pontos (razão excessiva). A razão excessiva nos conecta ao equívoco. Sendo assim, o que nos possibilita enxergar é a combinação de luz e sombra. Sem a sombra, o objeto todo iluminado é apenas uma imagem borrada de luz onde não conseguimos ver os seus detalhes, as suas particularidades. A luz ensina aos olhos que não precisamos apenas dela para enxergar, que muitas vezes são as sombras que guardam a essência do que é visto. A luz pode ser representada pela vida praticada enquanto estamos acordados. As sombras são os sonhos, os intervalos. E estes sonhos são fontes de uma transmissão que não encontramos frequência enquanto despertados demais, cheios de razão. Sonhar acordado, desligar a razão, acessar as sombras, tatear sem pedir por luz, viver a escuridão, a cegueira, entrar nos caminhos vazios dos canais da escuta é como olhar para o céu até que ele esteja esgotado de ser céu. Olhar e olhar muitas vezes mais até extinguir do céu os nossos conceitos e libertá-lo. Quando retornamos às palavras, somos também o que o mundo das sombras tem a dizer através de nós. Somos a fala da terra, do solo, parte daquilo que escutamos. Entendemos que o que falamos é em nós o mundo e o que ele nos ensina a partir das suas infinitas camadas de escuta.
Acredito ter sido o sol a nos ensinar as palavras. Quando ele ilumina a parte do mundo onde estamos, escutamos com os olhos o que tem a nos dizer as coisas através das cores. Para apontar, nomear, ter como referência aquilo que se vê, foi preciso primeiro grunhir, soltar qualquer ruído que pudesse vestir as coisas de palavras. Antes, a luz havia moldado os olhos, assim como o som moldou os ouvidos, o cheiro as narinas, o ar a voz. Os sentidos, todos eles, são mecanismos despertados para o universo. Existe o som sem a escuta, as cores sem os olhos e a voz sem o ar. O que sentimos basicamente nos serve de instrumentos para sobrevivermos, mas também é uma forma do universo sentir suas vibrações a partir de nós e das tantas outras criaturas existentes, como se fôssemos canais, antenas ou formas de sentir e viver. A sobrevivência pode ser tratada de forma mecânica: dormir, acordar, comer, trabalhar, transar, dormir. Uma vida assim é pouco erótica, transgredir essas ordens é se relacionar com o mundo eroticamente. Se sujar do mundo, ter as nossas partes expostas, nuas, nossos corpos misturados ao pó, à lama, às pedras, às vegetações, enfim, nos dá em troca a memória acesa que ilumina as nossas noites escuras. Essa relação erótica não é abusiva, não rompe com as linhas da liberdade, não é agressiva. Ela preenche as vagas dos intervalos que existem em cada gesto, em cada palavra com as memórias do mundo. As partes vagas dos intervalos são canais por onde a escuta se manifesta -também eroticamente -, são as sombras. Em cada célula da voz daquele que se sujou é possível escutar as vozes dos intervalos, encharcadas do mundo e do universo, onde o corpo se completa do líquido infinito que caminha feito ondas a nos partir inteiros e nos revelar uma casca aberta expondo tudo que existe. As infinitas memórias voam como o ar, atravessa-nos com suas pontas de vida e morte, passam por entre os nossos vãos onde despertam as nossas escutas.
Visitei outro dia um benzedeiro, o Sr. Cristiano, e em nossas conversas ele me disse que para benzer é preciso ter pureza (ele usou uma palavra mais original, que não me recordo agora). Por essa razão, consegue ver e escutar o que traz cada pessoa, sem que ela precise dizer qualquer palavra. Assim, ele consegue benzer e curar. Hoje tem 81 anos, começou a benzer aos 16. Disse que não sabe ler e escrever, que as orações apareceram em sua cabeça. Começou a trabalhar aos 7 anos na lavoura e desde sempre trabalhou com a terra, hoje é jardineiro. Seus canais de escuta estão dilatados, consegue curar uma pessoa mesmo que ela esteja muito longe. Consegue expulsar cobras e escorpiões de um terreno, com suas orações. De que modo? Certamente conversa com os espíritos destes animais, obrigando-os a deixar o local. Há aí muito mistério que ele, na sua simplicidade, tem guardado.
O homem que capinava a horta, que eu via da janela da cozinha, já deve estar dormindo. O que sonha uma pessoa com tamanha humildade? Seu corpo cansado sobre a cama depois de um dia em que várias tarefas impostas a ele foram cumpridas e outras tantas ainda por cumprir devem martelar em sua consciência o dever que nunca se esvazia. Mesmo em seu rosto descansado se vê a preocupação em ter que preencher os pratos que sempre estarão presentes na mesa de jantar e jamais se cansam de esvaziar.
A memória é uma bagagem suficiente. O esquecimento, uma dádiva.