Pátria Livre. Um livro sobre o
impresso que cita Conversas – 1948. Dois objetos sobre a mesma mesa das águas e
dos sonhos, uma escuridão.
Não
é tão simples quanto a luz que se acende em um cômodo do apartamento que vejo
mais adiante. Logo apaga. É que as letras também estão se apagando, o “n” por
exemplo. Logo agora que ele é um recipiente virado de boca para baixo ou um
tamborete. As duas pernas existem escondidas por trás das duas primeiras,
conversam sobre mulheres sem homens e as histórias dos gestos. Nos sonhos
existem selos como os das cartas, como os gestos, só que sob o gesso que imobiliza o membro para que o osso seja colado. Engessa nos sonhos aquele
colorido que se nota quando há óleo em água mais escura. A partir daí é fácil
comprar de um velho dois olhos de boi.
Minha
filha me trouxe semana passada um chaveiro em forma de volante de carro dentro
de um embrulho amassado que ela abria a todo instante para conferir se estava o
presente intacto. Imediatamente o chaveiro está zelando por minhas chaves. Lembro-me de ter achado os braços dela mais longos e tímidos. As letras também estão
engessadas nesta carta que te escrevo. Os braços da minha filha, agora que me
dei conta, sempre foram longos que te alcançam. Por que você quis ir embora
aquele dia? A casa era sempre um fio suportando a pena e o chumbo, amontoados,
disfarçados junto aos seus segredos com agulhas e linhas na caixa metálica de
biscoitos – não sei para onde foram esses objetos. Você era aquela casa, o corpo onde a gente
brincava, sua palavra era uma cadeira, também a mesa, habitando aos poucos nos
cômodos que descobríamos em nós. Meus irmãos ficaram na cozinha conversando
baixo ou pode ser que nem falavam e fitavam surdos o dentro de um copo ou
prato, dividiam entre eles naquele cômodo que hoje é uma nódoa o fato de serem
os filhos mais velhos enquanto eu corria para o quarto buscando entender hoje
aquele armário velho de onde você tirava suas roupas para... Você espremia
tudo, janela, tapete, naquela mala. Selo. Eu queria perguntar se você era
feliz, coisa que te perguntei noutra vez, mas a minha idade era braços
curtos demais.
Fiquei
aqui um tempo que esta carta não conta, deveria. Um tempo que escrever não.
Você se sentou depois na soleira da porta e eu lhe pedi pra que não fosse
embora. Seu choro me fez lembrar hoje o motivo que chamo de “i” tudo quanto é
rio e água. Lembra agora daquela água retombando, córrego, não é um “i” que se
ouve? Agudo, muitos “is”, sutis no comprimento dos sonhos, como pele. Escrevo
sem resposta e nenhuma carta selada quando minha filha me liga. É que naquela
noite você me deu esse abraço dizendo que ficaria para sempre nas nossas casas.
-*_Texto para exposição que aconteceu no galpão da Benfeitoria, em Belo Horizonte, 2015, a convite de Shima, o original exposto acompanha outra parte escrita por Ana Luiza Lima. Título: Casa