domingo, 14 de junho de 2015

Casa II

Pátria Livre. Um livro sobre o impresso que cita Conversas – 1948. Dois objetos sobre a mesma mesa das águas e dos sonhos, uma escuridão.

            Não é tão simples quanto a luz que se acende em um cômodo do apartamento que vejo mais adiante. Logo apaga. É que as letras também estão se apagando, o “n” por exemplo. Logo agora que ele é um recipiente virado de boca para baixo ou um tamborete. As duas pernas existem escondidas por trás das duas primeiras, conversam sobre mulheres sem homens e as histórias dos gestos. Nos sonhos existem selos como os das cartas, como os gestos, só que sob o gesso que imobiliza o membro para que o osso seja colado. Engessa nos sonhos aquele colorido que se nota quando há óleo em água mais escura. A partir daí é fácil comprar de um velho dois olhos de boi.

            Minha filha me trouxe semana passada um chaveiro em forma de volante de carro dentro de um embrulho amassado que ela abria a todo instante para conferir se estava o presente intacto. Imediatamente o chaveiro está zelando por minhas chaves. Lembro-me de ter achado os braços dela mais longos e tímidos. As letras também estão engessadas nesta carta que te escrevo. Os braços da minha filha, agora que me dei conta, sempre foram longos que te alcançam. Por que você quis ir embora aquele dia? A casa era sempre um fio suportando a pena e o chumbo, amontoados, disfarçados junto aos seus segredos com agulhas e linhas na caixa metálica de biscoitos – não sei para onde foram esses objetos.  Você era aquela casa, o corpo onde a gente brincava, sua palavra era uma cadeira, também a mesa, habitando aos poucos nos cômodos que descobríamos em nós. Meus irmãos ficaram na cozinha conversando baixo ou pode ser que nem falavam e fitavam surdos o dentro de um copo ou prato, dividiam entre eles naquele cômodo que hoje é uma nódoa o fato de serem os filhos mais velhos enquanto eu corria para o quarto buscando entender hoje aquele armário velho de onde você tirava suas roupas para... Você espremia tudo, janela, tapete, naquela mala. Selo. Eu queria perguntar se você era feliz, coisa que te perguntei noutra vez, mas a minha idade era braços curtos demais.


            Fiquei aqui um tempo que esta carta não conta, deveria. Um tempo que escrever não. Você se sentou depois na soleira da porta e eu lhe pedi pra que não fosse embora. Seu choro me fez lembrar hoje o motivo que chamo de “i” tudo quanto é rio e água. Lembra agora daquela água retombando, córrego, não é um “i” que se ouve? Agudo, muitos “is”, sutis no comprimento dos sonhos, como pele. Escrevo sem resposta e nenhuma carta selada quando minha filha me liga. É que naquela noite você me deu esse abraço dizendo que ficaria para sempre nas nossas casas. 


-*_Texto para exposição que aconteceu no galpão da Benfeitoria, em Belo Horizonte, 2015, a convite de Shima, o original exposto acompanha outra parte escrita por Ana Luiza Lima. Título: Casa