A madeira rachada era só a madeira rachada, a lasca exposta ao fogo. E da chaminé a fumaça que ganhava os pomares revelando espadas luminosas do feixe filtrado do sol, fincando a terra, parindo e morrendo tudo no mundo.
O relógio de prata no punho moreno deixado sobre a mesa, uma das mãos segura a faca enquanto a outra leva para dentro da cratera o esforço duro das máquinas que debulham o milho, destroçam a cana.
Dois ruídos apenas saem do meio do crepitado, das lenhas ainda acesas. Entre um e outro, um vão.
Um papel queimava o que ela havia escrito sem que o pai pudesse ver:
Um papel queimava o que ela havia escrito sem que o pai pudesse ver:
"Deus é a bondade?" (Ali já corroía um buraco rodeado de fogo para todo o corpo do papel). "...parece ser um couro estendido, repuxado, de um boi que morreu à facadas, onde cada rasgo é a brecha por onde se vê o do outro lado."
O papel ia, o fogo lia e apagava, lambendo em labaredas sem dar nota. Ardido na garganta igual à água que se pinga em chapa de ferro escaldado, o medo é na gente. Ele, a mãe assoviando no quintal. O medo é em tudo.
Voltou ao corredor e retirou o lenço que tapava o santo, antes que a mãe visse e resmungasse ao pai a sua estranheza, essa. O pai fingia não escutar, mas a tulha guarda do vento o miolo do feno.
"Essa é só uma brecha do couro". Pensou ela e voltou para o frio da sua cama, sua janela que dava para o terreiro. O mundo e seus pequenos. Começou a desenhar o barranco que se via abaixo do bambuzal e que era a margem mais alta do córrego. Antes, anotou no papel: "Barranco é o vão de um nas costas de outro, Deus e o diabo se encarando na lateral dos olhos, o muito de terra que some na lambida fina de um riacho. É por neste mundo existir barranco que existe igreja. Cristo, nosso senhor, pra sempre neles de mãos e pés, cruz é uma chapada aberta erguida do solavanco do chão". Olhou para a ferida em seu braço: "Também a ferida, o rasgo na pele que leva ao fundo, cratera, que não pode ficar aberta expondo a intimidade tão assediada, é barranco. Logo a ferida se torna pele seca, casca morta, tal qual a um vulcão inativo que mantém violada a restituição da lava, o sangue que corre por essas pontes, como onda, sempre buscando o coração. O corpo é demais rios, outras pessoas que nos habitam, chuvas que esbarram em cordilheiras para despencar em outro país. O corpo tem as suas cordilheiras, toda célula é cordilheira em si, de si, barranco."
Largou o papel sobre o colo por baixo da mesa e se lembrou do dia que escutara o tio contar para a sua mãe um sonho, eles dois sentados à sombra que a casa fazia no terreiro, ele preparava o pito, ela catava o feijão: "Sonhei um homem que viu a primeira vez um barranco, parou diante dele, todos homens e mulheres atrás, e ali ficou e tudo que a gente vive hoje é pensamento desse homem buscando o desvio ou ponte se erguer, toda guerra, tudo é um instante de palha em fogo no pensamento desse, como quando meu pai jogava jogo de tabuleiro com meu avô. O pensamento da gente é ainda o homem olhando o lá na frente sem poder atravessar, imaginando. Fico pensando em quando esse homem for dar no outro lado, o que é da gente depois?"
Olhou novamente a janela e o que ela via por cima desse barranco era um bambuzal: "esse parece que me olha mil vezes, só o terreiro é que não dá satisfação. As galinhas lá." Pensou.
O pai passou pelo corredor, indo ao seu quarto, ela que desenhava o barranco dobrou o papel e o escondeu dentro da saia. Passado o pai novamente, retornando, ela por fim rabiscou o último espaço: "Desenho e escrita é barranco. Casco de navio é barranco que flutua".
O pai no terreiro foi para ela o maior barranco onde o lá na frente ficou entre um vão esperando. Ele a chamou pela primeira vez depois de anos lhe espiando em silêncio. Em barranco bicho muda a couraça, o que rasteja flerta com o desvio, é o no-não-pode ordenado, soerguendo a encosta, delineando o precipício. O pai sentou-se ao seu lado enquanto ela esperava e olhou mais olhou para o lado do bambuzal e disse que nele existiam mil olhos.